Os candidatos que guardam mais de R$ 1 milhão em dinheiro vivo em casa
Não cabe dentro da calça: um comportamento curioso (e para lá de suspeito) que segue na contramão dos hábitos da população
Cidadezinha de 11 500 habitantes encravada no coração de Mato Grosso, com uma economia baseada na agropecuária, Vera viu o seu prefeito — que tenta a reeleição — declarar à Justiça Eleitoral nada menos que 9 milhões de reais em dinheiro vivo entre os seus bens. Guardar fora do banco quantias acima do milhão de reais não chega a ser uma novidade para Moacir Giacomelli (Podemos), que já havia informado ter 1,2 milhão de reais em 2008 e 2 milhões de reais em 2016. Produtor rural, ele confirma que, ao melhor estilo Tio Patinhas, o personagem da Disney que nadava em dinheiro na sua caixa-forte particular, dispôs da quantia em um cofre, mas conta já ter investido tudo na plantação de soja e milho. “Compro adubo, semente. Na lavoura, é giro grande”, relata o prefeito, dizendo que gosta de “mexer com dinheiro mesmo” em vez de usar o sistema bancário — ele declarou modestos 34 271,87 reais em bancos (contas e poupança).
O mato-grossense é um exemplo de um comportamento curioso (e para lá de suspeito) que segue na contramão dos hábitos da população. Enquanto os brasileiros carregam cada vez menos dinheiro no bolso (e muito menos em casa), optando por transações eletrônicas, muitos políticos gostam de mexer com dinheiro mesmo e alguns guardam as cédulas em locais inusitados, conforme demonstra o recente caso do senador Chico Rodrigues (DEM-RR). Vice-líder do governo Jair Bolsonaro no Senado, ele teve de se licenciar do mandato após a Polícia Federal encontrar 33 000 reais em sua casa, parte escondida nas nádegas (veja a reportagem na pág. 42). A eleição de 2020 é mais um exemplo de como a política do dinheiro vivo está mais viva do que nunca. Levantamento de VEJA com base nas declarações de bens identificou 42 postulantes a prefeito, vice ou vereador que declararam mais de 1 milhão de reais em espécie. Cerca de 3 000 candidatos, na eleição como um todo, disseram ter ao menos 100 000 reais em mãos.
Na teoria, o fato de os candidatos declararem os valores parece ser uma confissão absoluta de lisura. “Não ia fazer algo errado e colocar na declaração. Se está lá, é porque é 100% correto”, afirma o empresário Fernando Dantas Torres (PSD), candidato a vereador em Feira de Santana (BA), que declarou 3 milhões de reais. A fortuna, diz, veio da venda de um imóvel. Em Manaus, o candidato a prefeito Romero Reis (Novo), que declarou 3,2 milhões de reais, vai na mesma linha. “O que deveria ser questionado é uma série de candidatos que têm vida incompatível com a declaração”, diz. A inclusão de bens na declaração, no entanto, não chega a ser uma garantia de lisura porque, na prática, a relação apresentada não é alvo de nenhum procedimento de investigação por parte da Justiça Eleitoral. Além disso, os candidatos podem alterar, a qualquer momento, a informação que prestaram.
Isso, porém, deveria ser levado mais a sério porque a prática é uma forma clássica de realizar negócios longe de órgãos de fiscalização, como o Coaf, sonegar impostos, ocultar pagamentos ou viabilizar o tradicionalíssimo caixa dois. “Não é ilegal, mas dinheiro em espécie é um instrumento que pode ser usado para financiamento ilegal de campanha, especialmente após o veto à doação por empresas. O que conta saber é o seguinte: esse dinheiro declarado em espécie tem origem?”, afirma Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal. O economista Carlos Thadeu de Freitas, ex-diretor do Banco Central e do BNDES, reforça a impressão de suspeita: “As pessoas não querem mostrar que têm dinheiro, então fazem tudo via moeda, para que não se saiba quem são e quanto gastam”.
As justificativas dos candidatos são variadas — vão da falta de confiança no sistema bancário à necessidade de ter dinheiro em mãos para negócios, passando pelo temor de confisco. Candidato a vice-prefeito de Fernandópolis (SP), Artur Siqueira (PSDB), advogado, se vale da experiência profissional. “A maioria dos meus clientes perdeu muito dinheiro com bancos como na época dos planos econômicos”, lembra. O prefeito de Miracema (RJ), o pecuarista Clóvis Tostes de Barros (Solidariedade), que declarou 1,3 milhão de reais, não vê razão financeira para deixar dinheiro no banco. “Para que fazer aplicação bancária com esse juro baixo?”, indaga.
Diante de tantas desculpas difíceis de engolir, não é de espantar que membros da turma do dinheiro-vivo já tenham enfrentado problemas. Gilmar João Alba, do PSL, que concorre à prefeitura de Cerro Grande do Sul (RS) e informou 3 milhões de reais, decidiu evitar os bancos após ter sido alvo de uma operação da Receita em 2018, a Fumo Papel, que mirou fraudes de 277 milhões de reais no setor fumageiro — ele é dono de uma atacadista de tabaco. E não esconde que o objetivo foi tirar a fortuna do alcance da investigação. “Deixei o dinheiro fora do banco devido à operação. Até ter certeza de que eu estava 100% certo, como estou, fiquei com restrição em deixar tudo lá e me glosarem o dinheiro”, afirma. Já o prefeito de Araucária, no Paraná, Hissam Hussein Dehaini (Cidadania), foi condenado a quatro anos de prisão por envolvimento em um esquema na Funasa e preso duas vezes acusado de tráfico (em 2010, acabou absolvido dessa acusação). Agora acaba de comprar um Audi (modelo R8 V10), por 1,3 milhão de reais em espécie, com parte dos quase 3 milhões de reais que declarou. Na lista de bens, constam mais cinco veículos da mesma marca. “Eu ostento, porque vai todo mundo para o mesmo buraco e ninguém leva nada”, diz.
O Brasil já tem uma crônica longa e variada de escândalos relacionados ao tema. Em 2005, um assessor do deputado José Guimarães (PT-CE) foi flagrado em Congonhas com 100 000 dólares na cueca. Em abril de 2017, o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (MDB), assessor do presidente Michel Temer, foi visto correndo com uma mala com 500 000 reais entregues pela JBS. Recordista no gênero, o ex-ministro Geddel Vieira Lima (MDB) acabou preso por causa de 51 milhões de reais achados em um apartamento em Salvador, em 2017. Na investigação do caso das rachadinhas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, o Ministério Público identificou 2,7 milhões de reais em transações em espécie. Segundo os promotores, parte foi usada para comprar imóveis e pagar despesas pessoais do hoje senador. Recentemente, o próprio presidente fez uma doação de 10 000 reais em cédulas ao seu filho Carlos para a campanha a vereador do Rio e foi obrigado a refazê-la, por meios eletrônicos, ao ser alertado de que havia extrapolado o limite legal, de 1 064 reais. Na brasileiríssima política do dinheiro vivo, como se vê, o exemplo atualmente vem de cima.
Publicado em VEJA de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710