No dia seguinte ao evento de Jair Bolsonaro na Paulista, no qual o ex-presidente discursou para uma multidão que lotou sete quarteirões da avenida e tentou se defender das acusações a respeito de uma tentativa de golpe para impedir a posse de Lula, o governador Tarcísio de Freitas estava exultante. Em público, ele sempre vem dizendo que sua prioridade é concorrer à reeleição ao Palácio dos Bandeirantes. A pessoas próximas, no entanto, ainda impressionado com o sucesso do evento da véspera, admitia que pode tentar um voo mais alto em 2026, caso as forças da oposição o consagrem como a grande alternativa para fazer frente ao PT na disputa pela Presidência. Na análise que faz a grupos próximos, acha que o governo federal não tem conseguido e nem conseguirá marcas relevantes até o próximo pleito, o que abrirá espaço para a volta da direita ao poder.
O mandatário paulista não ficou otimista à toa. Ao lado dos governadores Jorginho Mello (PL), de Santa Catarina, Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, e Ronaldo Caiado (União), de Goiás, Tarcísio foi o único dos quatro chefes estaduais presentes a falar ao público no palanque. Segundo Tarcísio, Bolsonaro entregou o Brasil com superávit. Ele citou ainda a criação do Pix e a entrega do auxílio emergencial na pandemia, além de seus próprios feitos à frente do Ministério da Infraestrutura — em resumo, um discurso de candidato. Ao final, como que entregando a coroa ao seu herdeiro, Bolsonaro ergueu junto com ele os braços.”Nós sempre estaremos juntos”, retribuiu Tarcísio.
Caso seja realmente confirmado como o responsável por levar adiante um projeto nacional de direita, um dos dilemas de Tarcísio será o de decidir se vale trocar uma reeleição estadual em que desponta como franco favorito por uma batalha difícil. Mesmo se o governo federal não chegar em 2026 com alto nível de popularidade, a liderança do petista continuará sendo um obstáculo. Sondagem recente do Paraná Pesquisas mostrou que, fora o ex-presidente, que está inelegível, e a ex-primeira dama Michelle Bolsonaro, Tarcísio é o que mais se aproximaria de Lula entre os políticos da atualidade. Mesmo assim, ficaria 20 pontos atrás do petista no primeiro turno e, no segundo, seria derrotado. “Governadores paulistas que se lançaram ao Planalto em meio ou em renovação de mandato não foram bem-sucedidos, basta olhar José Serra, João Doria e Geraldo Alckmin em 2006”, lembra um correligionário.
Para o aliado, um dos fatores que freiam a possibilidade de o atual governador embarcar numa campanha à Presidência é a força eleitoral do petista. “Se Lula estiver na urna, Lula vai vencer. Ele sabe usar muito bem a máquina pública. Se o PT lançar outro nome, aí o Tarcísio consideraria concorrer”, especula essa mesma fonte. A manutenção da força política do ex-presidente como cabo eleitoral nos próximos anos é outra incógnita, ainda mais se ele sofrer uma condenação e for preso, hipóteses que parecem cada vez mais prováveis. Apesar disso, o entorno de Bolsonaro gosta de lembrar que, mesmo em um cenário bastante adverso em que várias investigações importantes têm como alvo o capitão, ele mantém a popularidade. Na manifestação da Paulista, o pastor Silas Malafaia chegou a dizer que, em caso de prisão, Bolsonaro será “exaltado”.
Um fator que pode ser crucial na decisão de Tarcísio é o resultado da eleição paulistana: o pleito será um grande teste de força do governador contra Lula. Num cenário previsivelmente polarizado, Tarcísio já anunciou que apoiará a reeleição de Ricardo Nunes (MDB) contra o outro nome que também desponta nas pesquisas, Guilherme Boulos (PSOL), o candidato do presidente. “O apoio do governo estadual fará a diferença e dará a robustez que o prefeito precisa”, diz Jorge Wilson (Republicanos), líder do governo na Assembleia Legislativa (Alesp). Na mesa de negociações, também ficou acertado que Tarcísio indicará o nome que deverá compor a chapa de Nunes, em acordo com Bolsonaro e o próprio prefeito.
Evidentemente, terá também peso em uma possível decisão por uma caminhada nacional a performance da gestão de Tarcísio em São Paulo. No campo político, o início foi tumultuado, com brigas internas entre secretários, queixas de bolsonaristas em busca de espaço e insatisfação de políticos com a falta de acesso ao Palácio dos Bandeirantes. Passados um ano e dois meses, a reclamação de falta de interlocução com o Legislativo, sob responsabilidade do secretário de Governo, Gilberto Kassab, e do chefe da Casa Civil, Arthur Lima, continua sendo feita nos bastidores, inclusive por parlamentares governistas. Na área da segurança, o governador tem sido criticado tanto pela explosão de crimes como o de roubos de celulares quanto pelo alto índice de mortalidade das operações policiais, principalmente na Baixada Santista, e por sua resistência em relação às câmeras corporais nos uniformes dos PMs. Tarcísio, aliás, deu recentemente carta branca para o secretário da segurança mudar todo o comando da PM, colocando na chefia oficiais alinhados com a chamada linha-dura de combate à criminalidade.
No campo de obras, Tarcísio já tem o que mostrar, principalmente nos setores da habitação e infraestrutura — área que o governador comandou quando foi ministro de Bolsonaro. Segundo o governo do estado, foram 20 000 casas entregues por meio do programa Casa Paulista e outras 200 000 unidades estão em produção. No fomento à política de desestatização, bandeira de campanha do governador, o grande projeto é a privatização da Sabesp, por meio da qual o governo promete universalizar o saneamento nos municípios atendidos, antecipar o cumprimento das metas do Novo Marco Legal do Saneamento de 2033 para 2029 e garantir a redução da tarifa. A ver.
No Programa de Parcerias de Investimentos (PPI-SP), estão previstos 220 bilhões de reais para os próximos anos. Na quinta, 29, o governo paulista realizou o leilão do TIC (trem intercidades) Campinas, o primeiro de um total de 13 previstos para 2024, e 44 até 2026 (veja reportagem na pág. 44). Outro projeto importante é o do túnel submarino que vai ligar Santos ao Guarujá, no litoral paulista. A obra, com previsão de investimentos de 5,8 bilhões de reais, foi incluída no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e será desenvolvida por meio de parceria público-privada (PPP). Na cerimônia de anúncio do projeto, Lula lembrou que Tarcísio já trabalhou em governos petistas, quando foi diretor-geral do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) na gestão Dilma Rousseff. “Depois eu estranhei vendo ele trabalhar com o Bolsonaro, mas paciência, é uma opção dele”, disse o presidente. O governador, que estava presente e não conseguiu esconder o constrangimento, ainda ouviu uma pessoa da plateia gritar “Tarcísio, volta para o PT”, provocando risos. O episódio repercutiu mal nas redes bolsonaristas, mas Tarcísio minimiza o caso, dizendo a aliados que quem irá inaugurar a obra será ele, sendo que metade dos aportes públicos serão bancados por recursos federais (a outra parte sairá do Palácio dos Bandeirantes).
O governador paulista precisará ainda resolver sua situação partidária. É dada como certa sua saída do Republicanos, sendo que os destinos mais comentados são o PL de Bolsonaro e, em menor escala, o PP de Ciro Nogueira. Ao mesmo tempo, Tarcísio tem de equilibrar as ambições eleitorais com a administração do estado, o que envolve manter uma boa relação com Lula, sobretudo em um momento em que os governos federal e estadual tocam projetos-vitrine conjuntos, como a construção do túnel Santos-Guarujá. Para o cientista político Rodrigo Prando, da Universidade Mackenzie, a postura do governador faz parte de um movimento em que o ex-ministro se equilibra entre atuar de forma pragmática, mais de acordo com o seu perfil, e agradar a base bolsonarista, que foi determinante para ele ser eleito governador. “Tarcísio se equilibra com um pé em cada canoa”, diz.
Na equipe do governador, Kassab acalenta o sonho de chegar ao comando do Palácio dos Bandeirantes em 2026. Assim, um mergulho de Tarcísio em uma eleição presidencial abriria espaço para o cacique do PSD pavimentar sua ambição. Já há até conversas nos bastidores sobre uma possível chapa com a agora senadora Tereza Cristina (PP-MS). Além de ex-ministros de áreas exitosas — Infraestrutura e Agricultura —, ambos são considerados fiéis por Bolsonaro, além de capazes de dialogar com o público que vai desde o centro até os mais extremistas. A ex-ministra não participou da manifestação na Paulista por um problema de saúde, e uma pesquisa mostrou que Tarcísio era o preferido pelo público presente. Coroado na manifestação realizada em São Paulo pelo bolsonarismo, o governador é um herdeiro promissor e competitivo, sem dúvida, mas há ainda um caminho longo a percorrer até 2026.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882