Em uma reunião no Palácio do Planalto no fim de março, o presidente Jair Bolsonaro ouviu do ministro da Economia, Paulo Guedes, um duro diagnóstico sobre as prováveis consequências econômicas provocadas pelo avanço do coronavírus — desemprego, fechamento de empresas, aumento da pobreza. Àquela altura, o governo já havia alinhavado uma série de ações para tentar mitigar algumas dessas tragédias. Estavam decididas, entre outras medidas, a flexibilização dos contratos de trabalho, a possibilidade de redução do salário dos trabalhadores da iniciativa privada e a concessão de um auxílio emergencial para informais, microempreendedores e pessoas desassistidas. Para ajudar a financiar tudo isso, haveria cortes de despesas. Entre as muitas sugestões apresentadas, Guedes propôs a redução por três meses do salário do funcionalismo público. Nada mais justo, segundo o ministro, que os servidores, que têm estabilidade no emprego e contam com regimes especiais de aposentadoria, dessem sua parcela de sacrifício. Bolsonaro não disse nem que sim nem que não. Quem conhece o presidente sabe o que isso significa — ou deveria imaginar.
A proposta inicial era reduzir em até 25% o salário dos que ganham acima de 10 000 reais. Diante do silêncio do presidente, a equipe econômica se fez de desentendida e levou o projeto adiante. Era, afinal, um bom álibi para, aproveitando a crise, impulsionar a reforma administrativa, uma promessa do governo que até hoje não saiu do papel. Consultado a respeito, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, sinalizou que abraçaria a causa. Dias depois, porém, o plano foi suspenso — por determinação, direta e explícita, de Bolsonaro. Em conversa com Paulo Guedes, ele explicou que, de início, já não era muito simpático à medida, até descobrir que não estava sozinho. De acordo com o presidente, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) mandaram recados de que se a iniciativa fosse enviada ao Congresso e aprovada seria imediatamente anulada pela Corte. Ou seja, o governo arcaria com o desgaste político de propor o corte dos vencimentos, que, no final, não teria eficácia alguma. “Cada funcionário público tem, em média, quatro familiares. Então, se for reduzido o salário de mais de 10 milhões de servidores do Brasil, serão cerca de 40 milhões de votos a menos”, disse Bolsonaro.
Batalha perdida, Paulo Guedes conseguiu convencer o presidente a, ao menos, autorizar o congelamento de aumentos do funcionalismo pelos próximos dois anos. A medida ajudará a economizar alguma coisa, mas não permitirá levantar recursos para combater a crise provocada pelo coronavírus. Atualmente, de cada 7 reais que o Brasil produz, 1 real é destinado a pagar salários, benefícios e encargos da administração pública. Somente no governo federal, as despesas com servidores representam cerca de 300 bilhões de reais por ano. Em onze estados, a situação fiscal é alarmante — em alguns casos, somente a folha de pagamento dos funcionários corresponde a mais de 60% da receita. Apesar disso, é errado demonizar os servidores públicos como categoria. Os médicos, enfermeiros e funcionários dos hospitais estão aí para provar isso. O problema é que nesse universo gigantesco há muitas distorções — funcionários essenciais muito mal pagos e funcionários muito bem pagos absolutamente desnecessários.
Bolsonaro, como ficou nítido, fez um cálculo político ao suspender a proposta de redução do salário dos servidores. Mas, ao agir assim, ele próprio deixou de dar sua contribuição pessoal à causa. Se autorizasse o corte, os vencimentos do presidente da República passariam de 30 934 reais para 23 201 reais — ou seja, diferença suficiente para pagar doze benefícios no valor de 600 reais concedidos aos trabalhadores informais. No caso dos ministros do STF que avisaram que a redução seria inconstitucional, o holerite deles cairia de 39 293 reais para 29 470 reais. Como são onze magistrados na Corte, seriam economizados 108 053 reais, o que somaria mais 180 benefícios — uma ninharia que embutiria uma importante carga de simbolismo. No Congresso, alguns parlamentares chegaram a propor que a medida fosse aplicada também aos vencimentos dos parlamentares. Na semana passada, o deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara, anunciou que reduzirá em 150 milhões de reais as despesas previstas no orçamento da Casa para 2020. Boa parte desse corte de gastos virá do cancelamento de viagens, horas extras e obras. Diminuir salários, por enquanto, nem pensar.
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682