Parlamentares bolsonaristas preparam atuação barulhenta nas comissões do Congresso
Em um palanque valioso do Legislativo, eles pretendem colocar em pauta temas controversos

A senadora Damares Alves (Republicanos-DF), ex-ministra dos Direitos Humanos de Jair Bolsonaro, esteve no topo da lista dos auxiliares mais populares do governo passado. Pastora evangélica, ganhou projeção política pela defesa radical contra qualquer tipo de aborto, incluindo vítimas de estupro. Amiga da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, ela deve assumir em março a presidência da Comissão de Direitos Humanos do Senado (CDH), o que tem gerado expectativas em determinados setores e calafrios em outros, especialmente entre os partidos de esquerda. O cargo vai conferir à parlamentar poderes para organizar a pauta, selecionar projetos que considerar prioritários, escolher os relatores e até desempatar uma votação. Ou seja, propostas que tratam de questões relacionadas às mulheres, família, pessoas com deficiência e idosos passarão necessariamente pelo crivo da ex-ministra antes de se transformarem em lei.

Defensora da anistia aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023 e, por tabela, ao próprio Bolsonaro, Damares pretende inaugurar os trabalhos da comissão com uma visita aos mais de 300 condenados pelo quebra-quebra que hoje cumprem pena no presídio da Papuda, em Brasília. A estratégia é tentar impor desgaste ao governo petista, historicamente simpático defensor de direitos dos presos, e constranger o Supremo Tribunal Federal (STF), a quem caberá julgar o ex-presidente por golpe de Estado. A senadora também planeja priorizar a votação de projetos polêmicos, entre eles, os que proíbem aborto em qualquer circunstância, criminalizam o uso de drogas e restringem tratamentos para mudança de sexo. “Presidir uma comissão como essa é fundamental porque dá visibilidade à oposição, mesmo para temas que não têm chance de serem aprovados”, diz a deputada federal Bia Kicis (PL-DF), ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.

O palanque das comissões pode mesmo ser valioso. Um dos pilares da plataforma eleitoral que levou Jair Bolsonaro à vitória em 2018, a chamada pauta de costumes não tem o condão de, por si só, definir o vencedor de uma eleição, mas, dependendo do cenário político, pode ser decisiva. “Avançar na luta pela hegemonia na guerra cultural, ocupando e conseguindo vitórias no plano parlamentar, fortalece as lideranças de direita para os embates que serão travados em 2026”, avalia Alberto Aggio, professor de ciências políticas da Unesp. Um estudo recente da consultoria Mar Asset Management fornece um número que permite avaliar o raio de influência que o discurso conservador representa. No ano que vem, a população evangélica, hoje em maior parte refratária às ideias mais liberais, deve atingir o patamar de 35,8% da população, o que, em tese, afirma o levantamento, pode colocar em risco a competitividade do projeto eleitoral de Lula.

A ordem, portanto, é ocupar os espaços — ou melhor, fazer barulho. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) assumirá a presidência da Comissão de Segurança Pública do Senado. Levantamento AtlasIntel, divulgado na terça-feira 11, mostra que a segurança pública está no topo das prioridades da população — 57,8% dos brasileiros entrevistados dizem que a criminalidade e o tráfico de drogas lideram o rol de suas preocupações. “Ser presidente da comissão vai ajudar a dar visibilidade a pautas conservadoras, sem aquela preocupação com os direitos humanos defendidos pelo atual governo, que advoga pelo desencarceramento em massa e tem uma visão romântica sobre os bandidos”, afirma o senador, que, entre vários temas, vai insistir na redução da maioridade penal para 16 anos. “Isso vai fortalecer o discurso dos nossos candidatos em 2026”, acredita.
Nos últimos anos, a polarização evitou que a chamada pauta de costumes avançasse no Congresso. Por isso, propostas em que não há consenso têm sido usadas como moeda de troca para atender a interesses políticos de ocasião. Faz tempo que no radar dos parlamentares de direita estão projetos que proíbem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, que permitem a castração química de condenados por crimes sexuais e a criminalização da posse de drogas. A esquerda, por sua vez, sempre defendeu a descriminalização do aborto e do porte de maconha para uso pessoal. Um exemplo de como esse embate tem servido apenas como munição para atingir objetivos políticos ocorreu no fim de 2023, quando o STF anunciou que colocaria na pauta de julgamentos dois processos que poderiam resultar na descriminalização do porte de drogas e também do aborto realizado nas primeiras semanas de gestação.

Na época, Congresso e STF mediam forças. Deputados e senadores reclamavam de uma suposta interferência indevida do Judiciário em assuntos legislativos. Os parlamentares tiraram da gaveta um projeto que criminalizava a posse e o porte de drogas independentemente da quantidade e outro que igualava ao crime de homicídio o aborto realizado após 22 semanas de gestação. As propostas alimentaram os embates entre esquerda e direita, mas, no fim, serviram apenas para que os presidentes da Câmara e do Senado reforçassem suas posições de liderança. Na prática, nada mudou — e não há por que pensar que agora vai ser diferente. Desde o retorno dos trabalhos do Legislativo, há duas semanas, a oposição organiza reuniões periódicas para discutir quais assuntos têm potencial para fustigar o governo. O próprio Jair Bolsonaro enviou mensagem a parlamentares aliados com sugestões sobre o que deve ser explorado: “A marca da direita: menos impostos, liberdade econômica/religiosa/expressão, pix, política externa, legítimo direito à defesa, propriedade privada, defesa da democracia/família”, escreveu.

Partido da família Bolsonaro, o PL ainda se articula para tentar ocupar outros colegiados estratégicos na Câmara: a Comissão de Saúde, cobiçada por movimentar grandes fatias do Orçamento, a Comissão de Fiscalização Financeira e Controle, que pode ser usada para investigar autoridades do governo, e a Comissão de Relações Exteriores, onde pretende abrigar o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Fiel à cartilha de Donald Trump, o parlamentar vê no cargo a possibilidade de produzir grandes estrondos no momento em que o país se prepara para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP30) e a cúpula do Brics. Nas redes sociais, ele já deu o tom do que seria sua atuação. Vai defender, por exemplo, assim como fez o presidente americano, a saída do Brasil da Organização Mundial da Saúde (OMS), farol das políticas sanitárias ignoradas pelo pai dele durante a pandemia. Sabe que a chance disso acontecer é zero. Mas o que importa mesmo é fazer barulho.
Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2025, edição nº 2931