Mais uma vez a estratégia de guerra se repetiu. Com a popularidade em queda e diante de uma série de questões complexas para resolver, como o agravamento da pandemia e as discussões fiscais sobre a retomada do auxílio emergencial (veja a reportagem na pág. 32), Jair Bolsonaro mirou na sua base mais radical de apoiadores, editando quatro decretos que ampliam o acesso da população às armas de fogo e restringem a capacidade das autoridades de rastrear e fiscalizar a legalidade do arsenal que está nas mãos de civis. Já era quase madrugada do sábado de Carnaval quando os dispositivos foram publicados no Diário Oficial. Horas depois, o presidente viajou para passar uns dias mergulhando e andando de jet ski nas praias de Santa Catarina. No domingo, questionado pela imprensa sobre as consequências da política bélica, jactou-se do ataque mais recente: “O povo tá vibrando”.
Bolsonaro e Projetos de Lei
Entre decretos, portarias e projetos de lei, Bolsonaro formulou em dois anos de mandato mais de trinta atos normativos para flexibilizar o acesso às armas de fogo. Os decretos da vez são mais um incentivo para ampliar a circulação de armas nas ruas. Constam entre as novas regras o aumento de quatro para seis armas que cada cidadão pode comprar (no início do governo eram duas), o afrouxamento do limite para aquisição de munições e até a autorização para que indivíduos com porte possam circular com duas armas na cintura. No mesmo pacote, itens que potencializam o poder de fogo foram excluídos da lista de controle do Exército, como é o caso de “pentes de munição” e miras telescópicas, e medidas que permitem rastrear a produção caseira de projéteis foram derrubadas. Para completar, Bolsonaro determinou que pessoas sejam avisadas com 24 horas de antecedência sobre operações de fiscalização de arsenais. “É como aumentar a potência e a velocidade de um veículo, mas retirar o cinto de segurança, o airbag e os semáforos das ruas”, critica Felippe Angeli, gerente de advocacia do Instituto Sou da Paz. Mesmo com tantas questões mais urgentes — e importantes — para debater, o Congresso agora terá de ocupar a sua agenda com a análise das medidas elaboradas pelo presidente. A oposição aos decretos já se espalhou de tal maneira que transcendeu os partidos de esquerda, rachando a própria base de apoio do capitão. Integrantes do Centrão e da bancada evangélica vocalizaram publicamente o rechaço às novas flexibilizações.
Se mantidos, os decretos ampliarão o cenário de insegurança jurídica e institucional que o Brasil atravessa em relação às armas de fogo. Dedicados a monitorar dados dos problemáticos bancos de registros oficiais do país, os institutos Sou da Paz e Igarapé foram capazes de levantar o tamanho do estoque de armas que está em posse de civis. Pelo menos 1,1 milhão de armamentos foram legalizados junto ao Exército e à Polícia Federal até novembro de 2020. O número representa um crescimento de 65% em relação ao arsenal registrado em 2018. O acervo também é muito maior do que as 629 594 armas que estão à disposição das Polícias Militares. A preocupação aumenta porque Bolsonaro tem empoderado donos de lojas e entidades de tiro desportivo, com essas últimas saltando de 151 para 1 345 no país. As instituições, que antes eram destinadas a treinar praticantes, vêm conseguindo aval para exercer outras funções nos últimos dois anos. Os decretos mais recentes garantiram a elas a autorização para ter acesso à compra de munições originais de fábrica. “Quando diminuem as possibilidades de fiscalização, potencializa-se o incentivo ao desvio”, afirma Melina Risso, diretora do Igarapé. “Não é o cidadão de bem que está se beneficiando.” Em um episódio ocorrido em 1995 que exemplifica a problemática e traz embutida uma grande ironia, o então deputado Bolsonaro teve uma moto e uma pistola roubadas no Rio. “No final, quem ganha é o crime”, completa Risso.
Armas de Fogo no Brasil
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as autoridades apreenderam 105 038 armas de fogo em todo o Brasil em 2019, mas apenas 6,4% do total foi comunicado para o Exército e a PF darem baixa em seus sistemas. Isso não ocorre à toa. Grande parte do que não é registrado acaba alimentando o mercado negro de armas. As apreensões, inclusive, estão em queda desde 2018. Vozes catastrofistas temem que uma população com um grande arsenal em mãos seja um passo perigoso para o início de uma guerra civil — cenário de baixíssima (ou nenhuma) probabilidade. Na verdade, o problema real é outro. No ano passado, o país registrou aumento de 5% nos assassinatos em comparação a 2019, sendo que 70% dos homicídios no Brasil são provocados por armas de fogo. Considerando-se esse dado, abrir de vez a porteira para a passagem da política bélica só trará mais insegurança e mortes.
Publicado em VEJA de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726