A história correu como um rastilho de pólvora a ressaltar a insuperável desigualdade — de renda, de poder de pressão e de força política — existente no país. No último dia 5, a Câmara de Vereadores de Dias d’Ávila (BA) aprovou reajuste salarial para os professores do município, que conta com pouco mais de 70 000 habitantes e está localizado na região metropolitana de Salvador. Apresentado pelo prefeito Alberto Castro (PSDB), o projeto garantiu um aumento de 46 centavos para um determinado tipo de docente a partir de dezembro. Quarenta e seis centavos. Já professores com mestrado receberão 106 reais a mais. A votação ocorreu em clima de constrangimento. O sindicato da categoria alegou não ter sido procurado para negociar. E o prefeito, alçado a uma notoriedade repentina, disse que houve apenas um “ajuste” para adequar os novos salários ao piso nacional do magistério, que é 4 580,57 reais. “É um avanço pequeno, mas é um avanço”, declarou, sem ruborizar, o vereador Renato Henrique (PP), que preside a comissão de educação e tem vencimento mensal superior a 10 000 reais. Já a vereadora Professora Rosenir (PT) protestou: “Eu acordei querendo queimar a minha carteira de trabalho”. A indignação dela e de outros tantos brasileiros tem razão de ser — e não se restringe a esse caso.
Menos de duas semanas depois da votação em Dias d’Ávila, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a mais poderosa da Casa, aprovou uma proposta de emenda constitucional (PEC) que ressuscita o chamado quinquênio ao prever um aumento de 5%, a cada cinco anos, nos vencimentos de determinadas categorias da elite do funcionalismo público. De autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a PEC concedia o benefício, em sua versão original, apenas a juízes e integrantes do Ministério Público, mas, durante a tramitação, outras carreiras foram contempladas, como defensores públicos, advogados da União e delegados da Polícia Federal. O texto já está em discussão no plenário do Senado e, se aprovado, terá de passar pelo crivo da Câmara dos Deputados. Preocupado com o impacto nas contas públicas, o governo tenta detê-lo. Não será fácil, dadas a grande adesão à proposta entre senadores, a desarticulação da base governista no Congresso e a força do lobby dos setores envolvidos, que têm poder e influência diametralmente opostos aos dos professores do pequeno município baiano. Segundo estimativa da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado, a “PEC do Quinquênio” pode custar 81,6 bilhões de reais entre 2024 e 2026 — isso, claro, se a lista de beneficiários não aumentar.
É muito dinheiro. Para cumprir a meta fiscal de 2025, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, terá de conseguir 50 bilhões de reais em receitas extras, conforme projeções da própria equipe econômica. Com 80 bilhões de reais, o governo banca metade do custo anual do Bolsa Família. A diferença é que o quinquênio deve engordar o contracheque de cerca de 38 000 servidores, enquanto o principal programa de transferência de renda sustenta 21 milhões de famílias. A proposta tem outros vícios. O aumento de 5% a cada cinco anos é automático, não importando se o servidor fez por merecê-lo. Além disso, o prêmio está reservado ao topo da elite do funcionalismo, que já tem vencimentos próximos ao teto salarial, de 44 008,52 reais. Enquanto isso, metade dos 11 milhões de servidores públicos do país, a grande massa esquecida pela PEC, tem salário médio de cerca de 3 400 reais. “O Congresso Nacional precisa decidir se é uma Casa em favor de todos os brasileiros ou se legisla em benefício de uma minoria”, reagiu em nota o instituto República.org, dedicado à gestão no serviço público. “O Brasil é um campeão mundial da desigualdade, e a disparidade da remuneração no setor público é gritante.”
Diante da repercussão do tema, o senador Rodrigo Pacheco reforçou uma antiga promessa e declarou que a “PEC do Quinquênio” só será promulgada caso seja aprovado antes um projeto que acaba com os supersalários no Brasil. A economia decorrente do projeto — que já passou pela Câmara, mas dormita na mesma CCJ do Senado — seria maior do que o gasto decorrente da PEC, de acordo com o senador. Pacheco também declarou que não haverá repasses de recursos adicionais para que cada órgão pague o quinquênio. Parece um avanço, mas não é, já que o Judiciário e o Ministério Público não geram suas próprias receitas, que são formadas pelos impostos pagos pelos contribuintes. “Carreiras que têm poder de pressão ignoram o fato de que ocupam 0,1% da pirâmide de rendimentos do Brasil. Não é 1% mais rico, é 0,1%. E aí se quebra um país, se quebra a Previdência, para atendimento desse 0,1%”, declarou o senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que votou contra a proposta na CCJ. No colegiado, prevaleceu o voto do relator, senador Eduardo Gomes (PL-TO), que, ignorando as estimativas, disse que a PEC — considerada o carro-chefe da chamada pauta-bomba — não quebrará o país. A ministra do Planejamento, Simone Tebet, discorda: “Não temos gordura, margem fiscal”.
O relator Eduardo Gomes externa uma lógica bem brasileira: nada que me beneficia ou beneficia os meus aliados prejudica as contas públicas. O cobertor orçamentário é curto, mas não para atender às demandas e aos interesses de setores poderosos. Segundo o cientista político Alberto Aggio, da Universidade Estadual Paulista, os setores mais organizados têm prevalecido cada vez mais na definição do Orçamento, inclusive porque atores políticos importantes do passado perderam força. O próprio PT não tem mais a capacidade de articular com segmentos da sociedade para tentar democratizar o Orçamento. Hoje, pelo contrário, o governo Lula enfrenta críticas de aliados históricos. “Lula não está sendo acossado pela Faria Lima, pelo Judiciário, pelo Arthur Lira (presidente da Câmara). Ele é parte desse mundo”, declara Aggio. “Na democracia lulista, o meu interesse vale tudo, e, se o meu interesse vale tudo, é legítimo o que fazem os homens do Judiciário: eu quero o meu”, arremata.
Desde que assumiu o terceiro mandato presidencial, Lula briga com Lira pelo controle de fatias orçamentárias. A tensão é permanente, mas não inviabiliza acordos, como ficou claro na aprovação de pontos da agenda econômica. A depender dos termos, a parceria pode continuar. No último dia 9, a Câmara aprovou um dispositivo que liberou o governo a antecipar o gasto de 15,7 bilhões de reais este ano. O favor foi incluído num projeto, apresentado pelo presidente da República, que recria o DPVAT, seguro que indeniza vítimas de acidente de trânsito. A iniciativa deu fôlego extra ao ministro Fernando Haddad e pode render dividendos aos parlamentares. Em retribuição, o governo cogita disponibilizar parte dos 5,6 bilhões de reais em emendas de comissão que haviam sido vetados por Lula. Nos bastidores, fala-se numa contrapartida de cerca de 3 bilhões de reais.
Nos últimos dez anos, por sinal, o Congresso protagonizou o maior avanço sobre o Orçamento da União. Uma das funções primordiais de deputados e senadores é votar a lei orçamentária. Até a década passada, os ajustes feitos pelos congressistas eram pontuais, e eles controlavam módicas fatias das verbas públicas. Esse quadro mudou radicalmente. Em 2015, no primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, as emendas parlamentares totalizaram cerca de 15 bilhões de reais. Em 2020, sob Jair Bolsonaro e o impulso do chamado “orçamento secreto”, alcançaram 44 bilhões de reais.
Na campanha de 2022, Lula disse que colocaria ordem na casa e acabaria com a farra das emendas. Não conseguiu. No Orçamento de 2024, havia previsão de 53 bilhões de reais em emendas parlamentares. O presidente vetou 5,6 bilhões, mas, por necessidade política, pode devolver parte dos valores vetados. Com a esquerda minoritária no Congresso, Lula precisa de Lira e do Centrão para aprovar projetos estratégicos, caso da regulamentação da reforma tributária, apresentada na quarta, 24, e do programa de crédito lançado recentemente. Como as divergências entre o presidente e o grupo político do deputado quase nunca são resolvidas no mérito, sobram as moedas de troca de praxe. O dinheiro das emendas, vale ressaltar, é usado por deputados e senadores para obras e investimentos. Os parlamentares costumam dizer que sabem mais das necessidades da população do que os engravatados de Brasília. Podem até ter razão, mas também é verdade que nem sempre direcionam os recursos para projetos prioritários ou atendem a quem realmente precisa. Muitas vezes, preferem apenas privilegiar seus redutos eleitorais. A falta de compromisso público gera desperdício, ineficiência e, segundo investigações da Polícia Federal, casos de corrupção. Os ralos são conhecidos.
Em meio aos problemas na articulação política, Lula conversou com Lira no último dia 19. Nenhum dos dois revelou o que foi tratado na ocasião. Dias depois, o petista cobrou do vice-presidente Geraldo Alckmin e dos ministros Fernando Haddad e Rui Costa, chefe da Casa Civil, mais empenho na negociação com o Congresso. Numa conversa com jornalistas, o presidente também declarou que não há crise na relação com o Legislativo. “Não há divergência que não possa ser superada. Se não houvesse divergência, não haveria necessidade de a gente dizer que são três poderes autônomos”, afirmou. Já Lira adotou um tom um pouco diferente. Desde que o deputado conversou com o presidente, seus aliados pararam de vazar a ameaça de que ele retaliará o Palácio do Planalto instalando CPIs ou votando pautas-bomba. O ambiente aparentemente deu uma desanuviada. Mesmo assim, num evento com empresários, Lira deixou claro que a disputa em torno do Orçamento continuará. “Essa briga não vai acabar nunca, são posicionamentos de placas tectônicas a respeito da destinação de políticas públicas. Toda democracia vive isso”, afirmou o deputado.
A comparação com as placas tectônicas, em razão dos poderes e dos cargos envolvidos na queda de braço, até faz sentido. Já a referência a políticas públicas é relativa e, na maioria dos casos, soa um tanto despropositada. A cúpula da República pensa, antes de qualquer coisa, no seus próprios interesses — políticos, eleitorais ou meramente pessoais. Já a base da pirâmide, num costume secular, fica em segundo plano. “O professor sempre foi esquecido no país, nunca foi prioridade. Apesar de estar previsto em lei de 2008, o piso do magistério não é pago por 90% das prefeituras”, diz o coordenador-geral do Sindicato dos Trabalhadores da Educação da Bahia, Rui Oliveira. “Pensa num absurdo. Na Bahia, ele existe”, complementa, referindo-se à votação em Dias d’Ávila. Não é um caso isolado. Ao contrário do que prega a propaganda oficial, há problemas graves na educação, na saúde e na infraestrutura — não necessariamente por falta de dinheiro. O contribuinte sustenta um Estado ineficiente, gastador e muitas vezes capturado por interesses bem específicos. A indignação decorre disso. Não é só pelos 46 centavos.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890