PEC da Blindagem: os bastidores do recuo do Congresso após pressão das ruas
Mal avaliado pela população, trabalhando em causa própria e investigado pelo Supremo, o Parlamento tem pela frente um enorme desafio

Falar mal do Congresso é um esporte nacional devidamente registrado na máxima de Ulysses Guimarães, ex-presidente da Câmara e da Constituinte de 1988. Ele dizia que se você acha a atual legislatura ruim é porque ainda não viu a próxima. Deputados e senadores, obviamente, não gostam dessa imagem, mas contribuem sempre que podem para que ela se consolide no imaginário popular. Nos últimos dez anos, eles passaram a controlar fatias cada vez maiores do Orçamento e garantiram o direito de mandar recursos para os seus redutos eleitorais, independentemente das prioridades do país. Com o poder adquirido, sentiram-se mais à vontade para defender os próprios interesses e virar as costas para a sociedade. O descompasso entre representantes, os parlamentares, e representados, os eleitores, aumentou com o tempo e ganhou os contornos de um abismo com a ofensiva de grupos influentes do Parlamento em defesa da anistia aos envolvidos na tentativa de golpe de Estado e da chamada PEC da Blindagem. Ambas as pautas são rejeitadas pela maioria da população, que saiu às ruas para protestar.

Convocados por movimentos sociais e setores da sociedade civil, os atos do domingo 21 levaram à Avenida Paulista, em São Paulo, e a Copacabana, no Rio de Janeiro, um público parecido ao das manifestações realizadas nos mesmos locais, no 7 de Setembro, em apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que até então parecia ter o monopólio das ruas. Os principais alvos de críticas foram os parlamentares, com destaque para o presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), que recorreu a manobras regimentais heterodoxas para garantir que a Casa aprovasse uma emenda constitucional que reduz a possibilidade de os congressistas serem investigados criminalmente pelo Supremo Tribunal Federal. Batizada de PEC das Prerrogativas por seus beneficiários e apelidada de outros nomes mais desabonadores pelos críticos, a proposta previa que deputados e senadores só poderiam ser processados pelo STF caso houvesse autorização prévia deles mesmos. O texto também estabelecia votações secretas pelos congressistas para manter ou suspender a prisão de colegas. Um caso clássico de legislação em causa própria, que rendeu uma reação à altura.
Segundo pesquisa Pulso Brasil/Ipespe, 72% dos entrevistados rechaçam a iniciativa. O dado, somado às manifestações populares de domingo, levou a Comissão de Constituição e Justiça do Senado a rejeitar por unanimidade a PEC da Blindagem na quarta 24. O relator da proposta, senador Alessandro Vieira (MDB-SE), lembrou que quando a exigência de autorização prévia vigorou, entre 1988 e 2001, os parlamentares avalizaram a abertura de investigação criminal contra apenas um colega num universo de mais de 200 pedidos. “É uma PEC desenhada para proteger bandido”, criticou Vieira. Rejeitada no Senado, a proposta tinha saído da gaveta na Câmara em razão de um acordo entre a oposição bolsonarista e o Centrão, bloco que dita o rumo das votações feitas pelos deputados. O acerto entre as partes previa o avanço da blindagem e, depois, a aprovação de uma anistia ampla, geral e irrestrita aos golpistas, medida que, conforme levantamento do Pulso Brasil/Ipespe, só conta com o apoio de 28% dos entrevistados, ante 46% contrários.

Se essa transação desse certo, Jair Bolsonaro se livraria da condenação à prisão, e cerca de oitenta inquéritos em curso no Supremo sobre desvio de emendas parlamentares seriam suspensos. Ou seja: a nova regra, se aprovada, entraria em vigor para proteger deputados e senadores suspeitos de irregularidades com verbas públicas. Não surpreende, portanto, que 78% dos entrevistados pelo Datafolha, em pesquisa realizada em agosto, tenham declarado que os parlamentares priorizam interesses próprios. “Esse gesto carrega uma mensagem clara, a de que proteger privilégios não pode ser uma prioridade, principalmente diante da necessidade urgente de restaurar a confiança da população nas instituições”, afirma o diretor-presidente do Centro de Liderança Pública, Tadeu Barros, sobre a rejeição da PEC da Blindagem pelos senadores. No caso do Congresso, recuperar a confiança por parte da população não é uma tarefa simples.

No mês passado, a Genial/Quaest mediu a reputação de treze “instituições”. O Congresso ficou na décima colocação, com uma taxa de confiança de 45% e de desconfiança de 52%, saldo negativo de 7 pontos. Só superou os juízes de futebol (saldo negativo de 9), as redes sociais (-16) e os partidos políticos (-27 ). Apesar de ser alvo de ataques realizados por bolsonaristas, o STF, nono colocado, merece a confiança de 50% dos entrevistados e registra saldo positivo de 3 pontos. Já a Presidência da República aparece em sétimo, com 54% de menção positiva e saldo de 10 pontos. “O Brasil está falando de tentativa de golpe, de anistia, de PEC da Blindagem, de o parlamentar ser protegido pelos seus iguais por voto secreto. Isso é um absurdo. O Congresso tem perdido a conexão com a sociedade e tem olhado só para si ou os seus interesses. Uma hora a sociedade grita: ‘Chega’”, diz o cientista político Carlos Melo, do Insper.

Alguns fatores contribuíram para o distanciamento entre representante e representado. Um deles são as emendas parlamentares. Quando Lula exercia seu segundo mandato, o governo liberava as emendas se quisesse e na quantidade que achasse conveniente. Para levar recursos a seus redutos eleitorais, deputados e senadores tinham de mostrar serviço. Só assim recebiam a retribuição. O modelo, como se sabe, descambou para o toma lá dá cá e o fisiologismo e, com o passar do tempo, foi substituído por outro, de efeito colateral nefasto. Aproveitando-se da fragilidade política da então presidente Dilma Rousseff, os parlamentares aprovaram uma regra que obriga o Executivo a liberar as emendas individuais. Na gestão de Jair Bolsonaro, diante da rendição do capitão ao Centrão, também tornaram impositivas as emendas de bancada e fizeram a festa com o orçamento secreto. Neste ano, há cerca de 50 bilhões de reais em emendas. Cada deputado pode destinar individualmente 37 milhões de reais. Cada senador, 68 milhões de reais. É um dinheiro que chegará às bases mesmo que eles não retribuam com nada para o Brasil.

Esse novo quadro teve como consequência a queda do envolvimento dos congressistas no debate e na votação de projetos. A figura do tribuno nacional saiu de cena, dando lugar à do “vereador federal”, que se dedica a seu mundinho político e à própria reeleição. “O Legislativo está exagerando no volume de emendas, invadindo a programação do Executivo e fazendo com que a renovação parlamentar se torne mais difícil. Hoje, deputados e senadores são mais despachantes do que legisladores, o que é lamentável”, diz o ex-senador Jorge Bornhausen. Não há mais a figura dos grandes líderes, que se faziam ouvir pelos colegas, inclusive por quem discordava deles, e conduziam a pauta e as discussões. Agora, prevalece a lógica das redes sociais, principalmente entre os oposicionistas, que costumam frequentar o plenário para gravar vídeos para seus seguidores. O objetivo nem sempre é aperfeiçoar projetos ou qualificar a troca de ideias, mas lacrar e conseguir engajamento.

Estrela da oposição nas redes sociais, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), por exemplo, causou um alvoroço quando subiu à tribuna da Câmara de peruca loira, apresentando-se como Nicole, para proferir um discurso considerado transfóbico pela esquerda. A Justiça do Distrito Federal chegou a condená-lo a pagar 200 000 reais em danos morais coletivos pelo episódio, mas ele nunca recebeu reprimenda dos colegas. Na Câmara, impera o espírito de corpo e só recentemente algumas punições passaram a ser adotadas, especialmente após bolsonaristas ocuparem à força a Mesa Diretora da Casa para exigir a votação do projeto de anistia. Três deles podem ter os mandatos suspensos. Outros receberão advertências por escrito. Mas a blindagem ainda é regra. O deputado André Janones (Avante-MG) escapou da guilhotina apesar de reconhecer a prática de rachadinha em seu gabinete. Já a cassação de Glauber Braga (PSOL-RJ), pedida depois de ele ter agredido um militante do Movimento Brasil Livre, está em banho-maria.

Apesar de enfrentar problemas de reputação desde a redemocratização, o Congresso já prestou serviços importantes ao país, da promulgação da Constituição de 1988 à aprovação de um auxílio emergencial para mitigar os efeitos da pandemia de covid-19. Da consolidação de programas sociais à nova reforma tributária, que ainda precisa ser regulamentada. O recado das ruas no último domingo foi claro: é preciso retomar as discussões que realmente interessam à sociedade. “Se o Congresso não fizer as reformas estruturais, ele jamais vai melhorar a imagem ruim”, afirma o cientista político Alberto Aggio, da Universidade Estadual Paulista. A receita é simples. Para tirá-la do papel e lustrar a própria reputação, deputados e senadores precisam gastar mais energia com o que realmente importa à coletividade.
Colaborou Hugo Marques
Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2025, edição nº 2963