A procuradora-geral da República Raquel Dodge enviou nesta quinta-feira ao Supremo Tribunal Federal (STF) a sua primeira manifestação contra a tentativa de revisar a execução da pena após a condenação em segunda instância. No documento, obtido por VEJA, Dodge critica as decisões recentes de ministros que têm ignorado esse entendimento do plenário do STF, fixado no dia 5 de outubro de 2016. “Tem-se observado a sua progressiva inobservância em decisões monocráticas proferidas por Ministros do STF”, escreveu a procuradora-geral. “A revogação deste importante precedente, menos de um ano após a sua formação, vai de encontro à necessidade de se garantir um sistema jurídico estável e previsível”, completou.
De 2009 até 2016, o Supremo entendia que a pena deveria ser executada, colocando o réu atrás das grades, somente quando a sentença transitasse em julgado. Ou seja, quando fossem esgotadas todas as instâncias e os trâmites dos tribunais. No entanto, em fevereiro de 2016, a Corte decidiu rever essa posição. Essa virada foi formada por um placar de 7 a 4 no plenário. O efeito dessa mudança foi imediato. No mês seguinte, o ex-senador Luiz Estevão, que ao longo de onze anos recorreu 36 vezes ao judiciário, foi preso por já ter sido condenado em segunda instância em 2006. Oito meses depois, o STF voltou a discutir essa questão, que continuava gerando controvérsia no meio jurídico. Numa nova votação, seis ministros votaram a favor de manter a execução penal após o julgamento em segunda instância, enquanto cinco foram contrários a esse entendimento. A partir daí, esperava-se que a questão estivesse resolvida. Só que não. Alguns ministros passaram a dar decisões contradizendo a jurisprudência do Supremo.
Para a procuradora-geral, a revogação desse entendimento por alguns integrantes do STF representa “triplo retrocesso”. Primeiro porque gera uma insegurança jurídica e coloca o “sistema de precedentes incorporado ao direito brasileiro” numa posição instável e sob descrédito. Segundo: o cumprimento da pena seria ameaçado com processos longos, “recursos protelatórios e penas prescritas”. Por fim, seria colocado em questão a própria “credibilidade da sociedade na Justiça, com a restauração da percepção de impunidade”.
Em sua manifestação, Dodge destaca que o ministro Gilmar Mendes tem seguido o entendimento de seu colega Dias Toffoli, proferindo decisões defendendo que a execução da pena deve aguardar o julgamento do recurso especial no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Mas, de acordo com a procuradora-geral, isso poderá acarretar “os mesmos problemas que levaram à superação do antigo entendimento jurisprudencial acerca do tema: a interposição de recursos especiais incabíveis (e de outros expedientes processuais passíveis de serem manejados em seu bojo), voltados a alongar o processo e a forçar a ocorrência da prescrição punitiva ou executória”. Dodge também cita dois casos que estão sob a relatoria dos ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski.
Na atual composição do STF, dois votos podem inverter o placar fixado em agosto do ano passado. Um deles é o do ministro Alexandre Moraes, nomeado em fevereiro deste ano para substituir Teori Zavascki, morto em janeiro. Ao ser sabatinado no Senado, o magistrado novato não disse se é a favor ou contra a execução da pena em segunda instância. Apenas se limitou a declarar que a prisão antes de o processo transitar em julgado não fere a Constituição. O outro é o de Gilmar Mendes — que, apesar de ter votado a favor da prisão após o julgamento em segunda instância, costura com Toffoli uma alternativa em que o réu poderia ir para o xilindró somente após o julgamento de recurso especial no STJ. Nesse caso, alguns ministros acreditam que Moraes poderá encampar a proposta.
Sabendo disso, a procuradora-geral cita em sua manifestação um voto do ministro Luis Roberto Barroso em que se destaca um dado importante: o STJ só deu razão aos réus condenados em segunda instância em apenas 10,29% dos recursos especiais criminais interpostos entre janeiro de 2009 e junho de 2016. “Ou seja, ao se possibilitar a prisão do réu condenado nas instâncias ordinárias, mesmo que pendente recurso especial, não se levará à prisão alguém que será absolvido depois, quando do julgamento de tal recurso pelo STJ”, afirma Dodge. “O máximo que poderá acontecer, e ainda assim muito raramente (o que se deduz diante do baixo percentual de provimento de recursos especiais pelo STJ), é que a prisão atinja alguém que, posteriormente, tenha sua pena reduzida no julgamento do recurso especial, alterando-se, assim, o regime de cumprimento de pena”, diz a procuradora-geral. A manifestação de Dodge será apreciada pelos ministros do Supremo.