Um dos principais alvos dos ataques de Jair Bolsonaro e da máquina bolsonarista nas redes sociais, ambos interessados em mudar o foco das responsabilidades pelos efeitos da crise da Covid-19, os governadores experimentaram nos últimos anos um protagonismo que havia muito não se via. Não só tiveram de, ao lado dos prefeitos, formar a linha de frente no combate à pandemia, em razão da postura errática da gestão federal, como assumiram o importante papel de defesa da democracia e das instituições ameaçadas pelos constantes — e indesejáveis — arroubos do presidente, como na última semana, quando catorze deles assinaram uma carta em apoio ao Supremo Tribunal Federal diante dos ataques do chefe do Executivo.
Esse protagonismo, ao que tudo indica, está longe do fim. Em 2022, os governadores devem chegar ao julgamento das urnas em um contexto favorável, com dinheiro em caixa, a economia sendo retomada com o esperado fim da pandemia e a popularidade em alta, após um duro período em que tiveram de tomar medidas contestadas, como fechar o comércio e restringir atividades e a circulação de pessoas. Pesquisa XP/Ipespe mostra que a avaliação de ótimo/bom na condução da crise sanitária subiu 7 pontos entre julho e agosto (de 36% para 43%), enquanto a de ruim/péssimo caiu 9 (de 28% para 19%). Na contramão, Bolsonaro viu a sua taxa negativa chegar a 59%, contra 21% da positiva. “Os governos estaduais não costumam ter tanta atenção do público, mas as omissões de Bolsonaro na pandemia abriram espaço para os governadores se posicionarem e ocuparem esse vácuo”, avalia o cientista político Claudio Couto, professor da FGV, que cita como exemplos a aposta na vacina feita por João Doria (PSDB) em São Paulo e a articulação de governadores no Consórcio Nordeste.
Se o arrefecimento da pandemia vai dando refresco na popularidade de um lado, de outro aponta para algo que pode ser ainda mais decisivo: cofres estaduais cheios no ano em que boa parte dos governadores tentará garantir a reeleição, emplacar sucessores ou viabilizar voos mais altos, como a Presidência, casos de Doria e do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB). A perspectiva positiva se dá por causa do incremento das receitas, algo que já pode ser notado em 2021 (veja o quadro), permitida pelo início da retomada da economia e auxiliada pela inflação de quase 9%, que se reflete no acréscimo da arrecadação. Ironicamente, uma parte da recuperação financeira dos estados pode ser atribuída aos 37 bilhões de reais que o governo federal distribuiu para fazer frente à emergência sanitária. Para receber o socorro, eles foram obrigados a congelar alguns gastos, como o reajuste salarial do funcionalismo, o que resultou em mais dinheiro em caixa.
A quase bonança atinge até quem não esperava. Estados que nos últimos anos se notabilizaram por agudas crises fiscais, como Rio Grande do Sul, Rio e Minas, onde servidores tiveram atrasos de salários, agora se permitem fazer planos de investimentos. A agenda daqui para a frente segue a receita que não é nova, mas que produz dividendos políticos: anúncios de obras, de preferência as de grande visibilidade, como estradas. “O saneamento das contas não é um fim em si mesmo, mas justamente um meio de viabilizar investimentos”, aponta o secretário da Fazenda gaúcha, Marco Aurelio Cardoso.
Em paralelo, os governadores também cumpriram o seu papel no incremento dos cofres, como ao viabilizar privatizações. No Rio Grande do Sul, a venda de estatais de gás e energia elétrica deve render pelo menos 4,5 bilhões de reais ao estado. Eduardo Leite já anunciou que 1,3 bilhão será usado em um pacote de obras viárias até dezembro de 2022. No Rio, o governador Cláudio Castro (PL), efetivado após o impeachment de Wilson Witzel, tenta superar o desconhecimento da população turbinado pela venda da Cedae (companhia de abastecimento de água), que rendeu 22 bilhões de reais aos cofres fluminenses. Agora, cumpre uma agenda digna de campanha eleitoral. Anunciou um plano para investir 17 bilhões de reais nos próximos três anos em projetos concebidos na medida para aparecer na propaganda eleitoral: construção de casas, salas de aula, unidades de saúde ou obras de mobilidade. Desde janeiro, participa de uma média de duas inaugurações por mês, além de celebrar convênios com prefeituras — seu estafe contabiliza o apoio de pelo menos setenta prefeitos (o estado tem 92). Em Minas Gerais, Romeu Zema (Novo) ainda patina para equilibrar as contas, mas terá um reforço providencial: 11 bilhões de reais pagos pela mineradora Vale em um acordo pelos danos causados em Brumadinho em 2019. O dinheiro vai financiar a manutenção de estradas, a implantação do rodoanel metropolitano e a conclusão de hospitais regionais. “Nós pegamos um estado estruturalmente deficitário, mas conseguimos quitar salários que eram pagos atrasados fazia cinco anos e meio”, afirma o secretário da Fazenda, Gustavo Barbosa.
Principal opositor de Bolsonaro entre os governadores, João Doria tem outro motivo para se animar. Embora já tenha o trunfo nada desprezível da CoronaVac, o tucano lançará mão de um plano de grandes obras — a gestão espera 18 bilhões de reais apenas com concessões e privatizações, como a da Emae (empresa de águas e energia) —, a retomada da construção de linhas do metrô, de ao menos um trecho do Rodoanel Norte e obras viárias no interior. Para os próximos meses, a aposta é na retomada da economia, sobretudo com a flexibilização viabilizada pela vacinação de toda a população adulta com a primeira dose. Nas contas do secretário da Fazenda, Henrique Meirelles, a economia de São Paulo deve crescer entre 7% e 7,8% neste ano, enquanto a expectativa nacional é de 5%. “O reaquecimento foi puxado pelos setores de telecomunicações, tecnologia e transportes e, a partir do segundo trimestre, pelo setor de serviços. Mas em 2022 vai haver um avanço generalizado”, prevê.
Há quase 100 anos, em 1928, o presidente Washington Luís declarou que “governar é abrir estradas” e, com isso, cunhou a frase que se tornou símbolo de uma estratégia eleitoral predominante na história do país. Em 2022, outros fatores estarão na mesa, como a avaliação da atuação na pandemia e a situação econômica, mas é certo que os governadores terão bala na agulha para tocar uma campanha mais ostensiva, nos velhos moldes. O que se espera, claro, é que eles não transformem o ensaio da recuperação econômica em um show de irresponsabilidade fiscal.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752