Na segunda-feira, pouco depois das comemorações de 7 de Setembro, em um restaurante de Brasília, dois importantes auxiliares do presidente Jair Bolsonaro especulavam sobre um dos segredos mais bem guardados da República: o nome que será indicado para ocupar a próxima vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). “Deve ser um evangélico. Mas, se eu tivesse que apostar, aposto que será o Jorge”, diz o primeiro auxiliar. O segundo discorda: “O Jorge? O Jorge é muito talentoso, mas o presidente precisa dele no gabinete, por perto, ajudando a organizar as coisas. O André parece mais preparado para esse cargo. E tem o Aras, né?”. “É verdade. Mas o Aras ainda está fazendo curso para evangélico”, ironizou o primeiro. O tema da conversa não é aleatório. Há muitos interesses e muitos interessados no perfil do futuro ministro, especialmente porque pode acabar nas mãos dele uma decisão capaz de provocar a maior reviravolta política dos últimos tempos.
No início do ano que vem, tão logo o STF volte a funcionar de maneira presencial, a Segunda Turma vai julgar se o ex-juiz Sergio Moro atuou ou não com parcialidade ao condenar o ex-presidente Lula por corrupção na Operação Lava-Jato. Quatro votos são conhecidos no colegiado — dois, dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, favoráveis a punir Moro por falta de isenção, e dois, de Edson Fachin e Cármen Lúcia, em favor do ex-juiz. O quinto ministro da turma é Celso de Mello, que se aposentará em novembro. Se esse cronograma for cumprido e não ocorrer nenhuma manobra de ocasião (nenhum pedido para mudança de turma dos atuais componentes da Corte), o voto de minerva será proferido pelo ministro que Bolsonaro indicar. Em outras palavras, o destino de Lula passa pela caneta de seu maior desafeto.
Ex-presidiário e condenado a 26 anos de cadeia por corrupção e lavagem de dinheiro, Lula ainda alimenta o sonho de voltar a comandar o país. A suspeição de Sergio Moro derrubaria, ainda que de forma temporária, a proibição imposta pela Lei da Ficha Limpa para que ele volte a se candidatar. O petista foi julgado e considerado culpado em dois processos em primeira e segunda instância. Beneficiário do maior escândalo de desvio de dinheiro da história, o ex-presidente acusa o ex-juiz Sergio Moro de persegui-lo e agir por motivação política. Caso o STF acolha esses argumentos, as condenações seriam anuladas e ele recuperaria, de imediato, seus direitos políticos. Sabe-se lá por que, Lula tem absoluta certeza de que o veredicto será a seu favor — e já tenta se recolocar no cenário político, mirando, claro, as eleições presidenciais de 2022.
Desde novembro do ano passado, quando deixou a cadeia, o petista e seus apoiadores se deram conta de que a única pauta que lhes rendia algum holofote — o “Lula Livre” e os ataques coordenados à Operação Lava-Jato — ficou esvaziada. O ex-presidente aos poucos foi caindo no esquecimento, suas participações em conferências virtuais não atraíam um grande público e a memória de seu governo vem sendo apagada inclusive entre os eleitores que historicamente o apoiaram. Na segunda-feira 7, o ex-presidente divulgou uma gravação na qual se coloca como uma pessoa com credibilidade suficiente para encarar a função de líder da oposição e encabeçar o que chamou de um processo de “reconstrução” do país. Lula também fez uma série de ataques à gestão de Jair Bolsonaro, a quem chamou de irresponsável, e disse ter refletido sobre o papel que ainda lhe cabe “na luta do nosso povo por melhores condições de vida”. “Eu sei, vocês sabem, que podemos de novo fazer do Brasil o país dos nossos sonhos. E dizer, do fundo do meu coração, estou aqui, vamos juntos reconstruir o Brasil, ainda temos um longo caminho a percorrer juntos”. Assustador.
A certeza dos petistas sobre a decisão do STF é tamanha que, nos próximos dias, o partido vai lançar o que vem sendo chamado de “Plano de Reconstrução do Brasil”, um documento que apresentará “soluções” para problemas das áreas econômica e social. Além disso, uma ala da legenda tenta fazer com que Lula retome as caravanas pelo Brasil. A ideia é começar justamente pelo Nordeste, o último bastião eleitoral do petismo, mas que vê a popularidade de Lula sendo minada pelo avanço de Bolsonaro na região. “O Bolsonaro está marcando a sua presença no Nordeste, e seria razoável que o Lula também fosse para lá”, disse um petista. A ideia é que o ex-presidente participe de agendas com governadores aliados. “O primeiro objetivo é que o Lula reapareça na cena brasileira como o principal líder da oposição. A questão eleitoral é apenas uma consequência disso”, conta o deputado Paulo Teixeira (PT-SP). Reservadamente, os petistas confidenciam não acreditar que Bolsonaro vá condicionar a indicação do novo ministro ao objetivo de prejudicar Lula. “A turma em volta do Bolsonaro tem todo o interesse em acabar com o Moro porque não quer vê-lo candidato em 2022, porque quer destruí-lo. Esse sentimento, unido ao Centrão, que também foi afetado pelas investigações, forma uma massa crítica para acabar com o ex-juiz. Isso já deixou de ser uma vontade só do PT”, avalia um cacique da legenda. Se ele estiver certo, o impensável aconteceu: Bolsonaro e Lula juntos, imbuídos de um mesmo propósito. Difícil de acreditar.
Jorge, André e Aras, os personagens do diálogo que abriu esta reportagem, são o secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira, o ministro da Justiça, André Mendonça, e o procurador-geral, Augusto Aras. Oliveira é apontado como o mais fiel dos auxiliares de Bolsonaro, uma indicação considerada “segura” para o Palácio do Planalto e aquele que poderia, a critério do presidente, sacrificar tanto Lula quanto Moro no julgamento da suspeição. André Mendonça não pertence ao círculo mais próximo do chefe, mas tem a seu favor o fato de ter uma sólida formação jurídica, bom trânsito entre os atuais ministros do Supremo e ser pastor evangélico. Em uma das poucas pistas que forneceu sobre o perfil do futuro ministro do STF, Bolsonaro disse que indicaria alguém “terrivelmente evangélico”. Dos três, Aras, ao que parece, é o menos cotado. Além de não professar a religião, como apontou um dos interlocutores da conversa, ele ainda está no primeiro ano de mandato de procurador-geral e no meio de uma batalha para dar equilíbrio e ponderação ao Ministério Público.
Em seu governo, Lula fez oito indicações ao Supremo. Escolheu a dedo o perfil dos candidatos seguindo critérios bem peculiares. Alguns corresponderam às expectativas. Outros, não. Ele se ressente principalmente de dois: Cármen Lúcia e Dias Toffoli. Enquanto presidentes do STF, ambos postergaram ao máximo o julgamento que acabaria por rever a possibilidade de prisões após condenação em segunda instância. Cármen se recusou a discutir o assunto nos dois anos em que ocupou o comando dos trabalhos do tribunal. Toffoli deu sinal positivo para o julgamento depois de o ex-presidente já ter amargado mais de 500 dias de cadeia. Bolsonaro, sabe-se, não quer ter surpresas com suas indicações. Quer fidelidade.
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Clique e AssinePublicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704