Os atos recentes que foram desdobramentos diretos da enorme confusão ocorrida nas prévias do PSDB no fim do ano passado lembram a história do tenor que, sob o impacto das vaias que não o deixavam terminar a sua lamentável apresentação, se saiu com esta após encerrar o concerto: “Vocês não viram nada. Esperem pelo barítono”. Depois de uma campanha desastrada nas prévias, com acusações de todos os lados e pouca convergência, os tucanos encenam agora uma verdadeira ópera-bufa para tirar do palco o ex-governador paulista João Doria, justamente o nome escolhido pelo partido em novembro para encabeçar a chapa presidencial. A cada acontecimento, a legenda se afunda mais e mais no descrédito, com jogadas baixas, torpes, cujo risco é enterrar de vez um dos projetos políticos mais eficientes do país. Goste-se ou não dos tucanos, o Plano Real, a universalização do ensino fundamental e a Lei de Responsabilidade Fiscal são alguns dos maiores legados que ainda hoje ajudam o Brasil.
Numa espécie de revanche com sabor de golpe, os caciques sem voto do PSDB, que perderam as prévias, estão conseguindo avançar na pressão para que João Doria desista da empreitada. O argumento é que ele ainda não conseguiu pontuar bem nas pesquisas e carrega junto o peso de ter uma das maiores rejeições entre os candidatos. Cada vez mais isolado, o ex-governador não dá sinais de que vai abrir mão do direito de disputar o pleito e ameaça judicializar a discussão, tentando ganhar tempo para melhorar seu cacife político. Mas não será fácil. Embora demonstre uma capacidade enorme de resiliência e de perseverança, qualidades que permitiram a ele chegar à prefeitura de São Paulo e ao comando do estado sucessivamente, mesmo diante de prognósticos ruins no começo dessas campanhas, Doria terá muita dificuldade para receber aplausos nessa apresentação.
O último ato contra ele ocorreu na terça 17, em Brasília, quando o tucanato se reuniu para mandar o recado de que o atual postulante deve desistir da sua candidatura e facilitar a aliança de centro em torno de um outro nome, o da senadora Simone Tebet (MDB). Um dia depois, os presidentes do PSDB, Bruno Araújo, do MDB, Baleia Rossi, e do Cidadania, Roberto Freire, anunciaram que haviam chegado a uma conclusão, baseada em pesquisa sobre os pontos fortes e fracos de cada candidato, mas decidiram levá-la aos seus partidos apenas na terça 24. “Nós três chegamos a um consenso, só que não somos nós que vamos decidir”, afirmou Freire. O consenso, embora não dito, é em torno de Tebet. Difícil é explicar por que uma candidata que não é apoiada pelos principais nomes de seu partido (Michel Temer, Renan Calheiros, Helder Barbalho e outros), que tem 1% nas pesquisas e menos experiência em gestão deve ser a escolhida do PSDB, que gastou 12 milhões de reais dos cofres públicos para decidir seu representante na disputa presidencial.
Embora não seja reconhecido, o principal motivo para essa decisão parece ser a repulsa que os meios políticos tradicionais têm em relação a Doria. Com uma trajetória construída na iniciativa privada, de onde saiu da pobreza para 200 milhões de reais de patrimônio, o ex-governador de São Paulo se comporta como um CEO de empresa, distribuindo ordens e atropelando seus oponentes sempre que pode. Não por crueldade ou maldade, mas pela vontade quase obsessiva de concretizar aquilo a que se propõe. Na prática, ele é o retrato do antipolítico, desprezando rituais que são celebrados nos corredores de Brasília. Nas conversas que tem com prefeitos e deputados, não raro, ele leva um relógio em que controla o tempo gasto com cada um. Embora seja um hábito natural no mundo corporativo, vários saem ofendidos desses encontros porque acham que merecem mais tempo do interlocutor. Sua falta de sensibilidade com a vaidade nesse meio, de fato, não ajuda a conquistar apoio. Depois de ganhar as prévias, ele foi aconselhado a fazer uma grande demonstração de convergência, tentando unir seus rivais. Doria até convidou Bruno Araújo, que havia apoiado Eduardo Leite, para coordenar sua campanha. Mas na primeira entrevista que deu, cuspiu fogo no ex-senador José Aníbal, outro desafeto, de forma desnecessária. “José Aníbal deveria pedir música no Fantástico. Perdeu para mim na prefeitura, no governo do estado e agora”.
A nova crise tucana gerada pela tentativa de descarte de Doria acrescenta mais um capítulo a também conturbada construção de um acordo em torno da terceira via. Em outubro, havia nada menos que treze nomes do centro dispostos a enfrentar os favoritos Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro — até hoje nenhum despontou. Três deles naquele momento eram do PSDB: Doria, o governador gaúcho Eduardo Leite e o ex-senador Arthur Virgílio. Foi nesse cenário que os tucanos fizeram as prévias presidenciais, em novembro. A intenção era dar um exemplo de democracia interna, recuperar o protagonismo nacional da sigla e dar visibilidade e legitimidade ao escolhido. Ao final, Doria venceu, mas nunca levou. Sua pré-candidatura foi sempre bombardeada pelos caciques que parecem não ter aceitado o resultado — e também porque preferem ficar com o dinheiro do Fundo Eleitoral para as suas campanhas, em vez de apostar num candidato de que não gostam. Curiosamente, seu principal apoiador é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, maior nome da história da legenda, mas hoje sem tanta força interna.
A confusão gerada por essa disputa começou a entrar no seu momento mais agudo no sábado 14, quando Doria divulgou carta denunciando um “golpe” do presidente do partido para barrar sua candidatura (manobra que realmente existe). A manifestação veio após deputados e senadores do PSDB divulgarem um documento dando apoio a Araújo para avançar nas conversas com o MDB e o Cidadania — Doria não gostou e ligou para os líderes no Congresso perguntando de quem havia sido a ideia. Quatro dias depois, veio a carta — defensável do ponto de vista jurídico, mas sem o tom diplomático que era necessário. O texto era contrário a Araújo, mas também deixava numa posição desconfortável os membros da executiva, o que deu o pretexto ao presidente do PSDB para convocar a cúpula do partido e conseguir o apoio que sempre quis.
Do lado de fora da sala da reunião, onde os líderes se encontraram, ouviam-se momentos de tensão, mas os presentes saíram dizendo que o partido havia reafirmado a sua “unidade”. Aécio, o grande responsável pelo encolhimento do PSDB, anunciou a decisão de convidar Doria para uma conversa na qual ele ouvirá que a sua candidatura atrapalha as pretensões da sigla nos estados. “Ele terá duas alternativas: um gesto de grandeza política (de desistir) ou permanecer nesse enfrentamento”, afirmou. O senador Tasso Jereissati defendeu uma candidatura com outros partidos “mesmo que a cabeça de chapa não seja do PSDB”. No fundo, ambos estão declarando a morte da legenda.
Uma das munições que aumentaram o fogo na direção de Doria é uma pesquisa que circula entre líderes do PSDB, MDB e Cidadania, na qual Tebet apareceria bem melhor na foto, com potencial maior de crescimento. Tal argumento não bate com a realidade. Ironicamente, um dos pontos levantados pelo ex-governador paulista para se manter no páreo são justamente as sondagens eleitorais realizadas até aqui. Apesar de todo o esforço dos caciques tucanos nos últimos meses para sabotar sua candidatura, ele aparece melhor que Tebet em todos os levantamentos. Além disso, tem uma história interessante para contar, não apenas pelo seu sucesso pessoal, mas pelos números alcançados no governo de São Paulo e pela sua defesa da vacina. O cronograma brasileiro foi antecipado de abril para janeiro, graças a sua insistência em começar a imunização em seu estado com a CoronaVac.
Num hercúleo esforço de resistência, Doria pode arrastar por via judicial a decisão final até a convenção nacional do PSDB, no fim de julho. A tese é que qualquer anúncio no sentido de rifá-lo da disputa antes disso seria ilegal, por descumprir o estatuto partidário. “Eles (dirigentes) estão querendo de todas as formas mudar o que decidiram”, diz o advogado Arthur Rollo, que assina com Doria a carta endereçada a Araújo. Para os adversários, no entanto, Doria é a opção do PSDB se o partido decidir ter uma candidatura própria, mas se a alternativa for por uma coligação, não há como impor aos aliados o nome de quem venceu uma eleição interna.
Sem uma candidatura competitiva e com tanta cizânia, o PSDB corre o risco de piorar o vexame de 2018, quando teve menos de 5% dos votos com Geraldo Alckmin. Também pode nem ter candidato, o que seria inédito desde a sua criação, em 1988. Quando FHC chegou ao Planalto pela primeira vez, em 1995, ficou célebre a frase do ministro Sérgio Motta de que o projeto do PSDB era ficar no poder “por pelo menos mais vinte anos”. Ficou apenas oito, perdeu quatro eleições para o PT e uma para Bolsonaro. O barítono, importante reconhecer, está mesmo pior que o tenor e o fim dessa ópera, pelo visto, será triste.
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790