No início de agosto, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, conversavam, em transmissão ao vivo, sobre o aparecimento de novas doenças no mundo quando surgiu uma dúvida: o nome do medicamento utilizado para tratar a aids, causada por um vírus que assombrou o planeta na década de 80. “Eu sei que tu não é médico, mas (para) HIV, no passado, usava-se Tamiflu, é isso?”, perguntou Bolsonaro. Diante da resposta de que o citado remédio era usado, na verdade, para tratar a gripe influenza, o presidente insistiu em saber qual era o tratamento para a aids. Com alguma insegurança, Pazuello disse que era o AZT. Em meio às dúvidas, Bolsonaro se voltou para uma pessoa que não aparecia no vídeo. “Era Tamiflu? Tomava o quê?”, indagou. “Não, era Zidovudina”, respondeu uma voz feminina. Ele continuou confuso: “Fala, fala, traduz, está feio, está esquisito”, disse. “É o AZT!”, ela encerrou. Na sequência, Bolsonaro e Pazuello discorreram sobre a cloroquina, o remédio preferido do presidente da República, e a figura oculta do vídeo foi novamente acionada para explicar sobre as diferentes aplicabilidades da medicação. Dessa vez, Bolsonaro celebrou: “Olha a doutora ali!”.
A tal doutora do vídeo tem sido constantemente acionada para solucionar dúvidas médicas — não só na live do presidente. Primeiro-tenente do Exército, a infectologista Laura Appi é uma guia para Eduardo Pazuello, general especialista em logística e que admite ser leigo na área da saúde. Ela é uma espécie de faz-tudo do ministro interino: atuou na prospecção para a compra de respiradores, acompanha-o em viagens e reuniões, ajuda desde a decifrar estudos científicos até que o general se adapte ao linguajar específico da medicina — bem diferente daquele empregado em um quartel. Appi já teve Pazuello como um paciente informal. Em julho, o ministro recorreu à infectologista nas primeiras horas do dia bastante preocupado. Dizia que estava com dificuldades para respirar e achava que tinha sido contaminado pelo coronavírus. A doutora, com toda a sua tranquilidade, recomendou a ele que inspirasse o ar tão forte quanto possível. Pazuello obedeceu e, diante da constatação de que ele respirava bem, a médica disse que o ministro, que havia exagerado no jantar no dia anterior, deveria sofrer apenas de uma indigestão. O diagnóstico foi acatado — e, ao que tudo indica, estava correto.
Pazuello costuma apresentar a auxiliar da seguinte maneira: “Eu sou o porta-voz dela, entendeu? O que ela fala, eu falo”. As declarações da doutora Appi, no entanto, nem sempre são uma unanimidade no meio médico. Ela defendeu, por exemplo, a tese de que pacientes assintomáticos da Covid-19 não transmitem a doença — hipótese que a Organização Mundial da Saúde (OMS) já ventilou, mas acabou recuando. A parceria dos dois vem de antes do ministério. A infectologista de 32 anos trabalhou com o general em Manaus, quando ele comandava uma região militar, e também em Roraima, ajudando a estruturar o hospital de campanha que recebe refugiados venezuelanos. Formada em medicina em 2014 e começando a residência médica no ano seguinte, Appi viu sua carreira dar um salto com a ida do general a Brasília, em maio passado: ela foi nomeada num dia e, no dia seguinte, já estava reunida com Jair Bolsonaro e ministros do governo para discutir a incorporação da cloroquina aos remédios usados para tratar a Covid-19.
Sob as orientações da doutora, o controverso medicamento, de eficácia não comprovada cientificamente, foi incluído na lista de manejo da pasta logo depois, passando a ter sua dosagem indicada para cada fase da doença. O ministro, por sinal, mantém em sua mesa um relatório, elaborado por Appi, com estudos sobre possíveis benefícios da cloroquina para ajudar o tratamento na fase inicial da doença. Apesar do endosso ao medicamento, ela é cautelosa ao falar sobre o assunto: diz que o ministério não aderiu a nenhum protocolo e que cabe ao médico a recomendação. E dá um exemplo: ela jamais indicaria o remédio a Pazuello, caso ele tivesse sido contaminado, já que o ministro apresenta problemas no coração.
Entre março e agosto deste ano, o Ministério da Saúde distribuiu mais de 5 milhões de comprimidos de cloroquina a todos os estados brasileiros — o triplo do que foi repassado ao longo de todo o ano de 2019 para o tratamento de malária, cuja eficácia, nesse caso, é comprovada. Na lista estão inclusive governos que fazem oposição a Bolsonaro e à pregação oficial do uso do medicamento. São Paulo, por exemplo, está no topo: já recebeu quase 700 000 comprimidos. Na sequência vêm Pará e Alagoas. O ministério informa que o repasse é feito sob demanda das Secretarias de Saúde e que, atualmente, não há disponibilidade para atender todas. Ao que parece, além do ministro, a “doutora” vem expandindo sua influência Brasil afora.
Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701