Sem consenso, Congresso vê aumento da pressão por anistia aos presos do 8/1
Hugo Motta vem tentando contornar a articulação e se recusando a pautar a proposta. Os movimentos, no entanto, cresceram nos últimos dias

A dona de casa Rosana Maciel Gomes, hoje com 52 anos, saiu de Goiânia, onde mora, para ser presa em flagrante dentro do Palácio do Planalto durante os distúrbios golpistas de 8 de janeiro de 2023. Denunciada pela Procuradoria-Geral da República por cinco crimes, ela ficou presa até agosto de 2023, quando obteve o direito de responder ao processo em liberdade mediante o uso de tornozeleira eletrônica. Seis meses depois, no entanto, quebrou o equipamento e empreendeu uma fuga pela América Latina, passando por Uruguai, Argentina e Peru, até ser detida ao tentar entrar ilegalmente nos Estados Unidos um dia depois da posse do presidente Donald Trump, em janeiro de 2024. Foi deportada em agosto, detida ao desembarcar no aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, e levada a um presídio de Goiânia, onde irá cumprir a pena de treze anos e seis meses imposta pelo Supremo.
No curso das investigações sobre os distúrbios de 8 de Janeiro, cerca de 2 000 detenções foram feitas pela polícia. Grande parte da turma se livrou da Justiça fazendo acordos de não persecução penal. Ainda restam 141 pessoas atrás das celas e 44 em prisão domiciliar. Outras 61 estão foragidas em outros países, como a Argentina. O presidente de lá, Javier Milei, apesar de compartilhar do ideário de direita, não parece disposto a colocar empecilhos aos pedidos de extradição emitidos pelas autoridades brasileiras. Os foragidos e os que ainda estão presos aqui pelo 8 de Janeiro motivam, ao menos nos discursos dos políticos bolsonaristas, importante movimentação no Congresso, que deve crescer após o veredicto do STF: a concessão de anistia, em especial ao baixo clero da trama golpista.
Principal projeto na Câmara versando sobre o tema, o PL 2.858/2022 começou a circular no legislativo em novembro de 2022, logo após a derrota de Bolsonaro. Na época, como uma espécie de preâmbulo da confusão que ocorreria depois, caminhoneiros e outros apoiadores do ex-presidente promoviam bloqueios em rodovias contra a posse de Lula. Em abril de 2025, a bancada bolsonarista, organizada pelo líder do PL, Sóstenes Cavacante (PL/RJ), conseguiu o mínimo de assinaturas necessárias para pedir regime de urgência na tramitação do projeto. Desde então, o presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) vem tentando contornar a articulação e se recusando a pautar a proposta. A pressão, no entanto, cresceu bastante nos últimos dias. Impulso importante foi a entrada em campo do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que abraçou a campanha pela aprovação do projeto, coisa que vinha relutando havia tempos.
O alcance da anistia, no entanto, continua sendo o nó da discórdia. A estratégia de usar os presos do 8 de Janeiro foi responsável até por alavancar no noticiário os nomes de alguns anônimos, como a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, flagrada usando batom para pichar estátua do STF e que pegou catorze anos de prisão por cinco crimes, incluindo organização criminosa e tentativa de golpe de estado. Mas, nos últimos dias, com o julgamento do golpe na fase final no Supremo, políticos à direita passaram a defender abertamente uma anistia que inclua o ex-presidente, algo que enfrenta muita resistência, não só do governo e da esquerda, mas de parte expressiva do Centrão. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), acenou com um texto mais “light”, focado em redução de penas, o que não agrada aos bolsonaristas — o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que se empenha por sanções americanas ao país, já disse que uma anistia que não seja ampla não fará os Estados Unidos reverem as punições impostas até agora para tentar ajudar Bolsonaro. O governo Lula já deixou claro que tentará barrar a ideia. “Foram muitos recados nos últimos dias. Alcolumbre sem disposição de votar texto amplo, Lula acenando para o veto, o ministro Flávio Dino, do STF, falando em inconstitucionalidade. Vai colocar para votar para quê?”, questionou Lindbergh Farias, líder do PT na Câmara.

O resultado disso é que, embora cresça a agitação no Congresso, há uma enorme indefinição sobre o que afinal pode ser encaminhado. Há várias propostas, de parlamentares da extrema direita ao centro, com muitos tons e escalas do benefício. Nos bastidores do PL circula um texto que concede uma anistia ampla, geral e irrestrita, retroativa a março de 2019, no início do governo Bolsonaro. Há, ainda, uma outra discussão, em paralelo, sobre diminuir as penas dos crimes ligados à tentativa de golpe. Como no processo penal brasileiro a lei retroage para beneficiar os acusados, isso poderia gerar um efeito cascata para livrar os presos pelo 8 de Janeiro.
Apresentado com frequência como algo que pode ajudar na “pacificação” do país, a aprovação de uma anistia tende a provocar mais confusão. Um provável veto de Lula, por exemplo, elevaria a tensão no Congresso. Mesmo que o petista seja derrotado, e o veto derrubado, é muito provável que o STF barre a medida por considerá-la inconstitucional, já que os parlamentares não podem legislar sobre temas que a Constituição trata como pétreos. “Se um deputado apresentar uma PEC para abolir direitos fundamentais, a separação dos poderes ou a democracia, ela nem tramita. Os crimes imputados ao ex-presidente e a seu núcleo mais próximo são, de certa forma, equivalentes a isso”, explica Paula Dallari, professora de direito do Estado da Universidade de São Paulo.

Os sinais vindos da Corte de que não será aceito um perdão amplo são muitos. No último dia 2, Moraes afirmou que “a impunidade, a omissão e a covardia não são opções para a pacificação do país”. “O caminho aparentemente mais fácil da impunidade deixa cicatrizes traumáticas e corrói a democracia, como demonstra o passado recente do Brasil”, disse. Ao dar o seu voto no caso, o ministro Flávio Dino também rejeitou a hipótese. “Esses crimes já foram declarados pelo Supremo Tribunal Federal como insuscetíveis de indulto e anistia”, disse. Um caso lembrado com frequência é o do ex-deputado federal Daniel Silveira. Bolsonarista ferrenho, ele foi condenado criminalmente por sucessivos ataques à Corte e ao sistema eleitoral. Quando estava na Presidência, Bolsonaro concedeu a ele a graça (um tipo de perdão), mas a benesse foi derrubada por 8 votos a 2 pelo STF por ser inconstitucional. Curiosamente, a decisão contou com o voto do ministro Luiz Fux, agora exaltado pela direita por ter absolvido Bolsonaro. “Entendo que crime contra o Estado Democrático de Direito é crime político e impassível de anistia, porquanto o Estado Democrático de Direito é cláusula pétrea”, afirmou Fux no julgamento de Silveira. O seu voto amplamente divergente no caso do golpe, porém, animou a movimentação pró-anistia. “Fica evidente, ululante, flagrante, no voto do Fux, que não houve nenhuma das denúncias imputadas pela PGR. Isso abre um espaço muito grande e largo para a aprovação da anistia e é nisso que nós vamos trabalhar daqui para a frente no Congresso”, diz o deputado Ubiratan Sanderson (PL-RS), vice-líder da oposição na Câmara.
Embora boa parte da discussão sobre o que houve em 2022 e 2023 tenda a se deslocar para o Congresso, ainda há muita coisa na mira do STF. Além de mais quatro núcleos de acusados que serão julgados (26 denunciados), parte dos três inquéritos abertos sobre o 8 de Janeiro segue inconclusa, especialmente a investigação que visa a chegar aos financiadores da movimentação. “O julgamento não acabou. Os defensores do perdão buscam se antecipar, com uma ‘anistia preventiva’”, afirma Rosemary Segurado, socióloga e professora da PUC-SP.
Os militantes pelo perdão lembram com frequência da anistia ampla, geral e irrestrita aprovada no país em 1979, na ditadura, para abrir caminho à volta da normalidade institucional, mas o exemplo que deve ser levado em conta é outro. Em 1956, Juscelino Kubitschek pediu ao Congresso o perdão aos militares que tentaram impedir sua posse após a vitória em 1955. Oito anos depois, parte desses anistiados ajudou a derrubar João Goulart e a implantar a ditadura. Na atual trama golpista, quem clama por anistia é quem se movimentou para tentar impedir a posse de um presidente eleito pelo voto. Negar o perdão, nesse caso, pode ser, além de respeito à Constituição, uma maneira de evitar que tudo se repita.
Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2025, edição nº 2961