Nos últimos meses, muito se discute sobre as emendas parlamentares, um instrumento que permite aos deputados e senadores enviarem recursos do Orçamento da União a estados e municípios, normalmente privilegiando suas bases eleitorais. Não há nada de errado nisso — ou não deveria haver. O dinheiro é destinado, entre outras coisas, a construir escolas, quadras de esportes, obras de infraestrutura e a programas de saúde. O mecanismo permite que regiões muitas vezes esquecidas sejam contempladas por ações do poder público.
A imagem acima mostra bem o que isso representa. Nela, o senador Marcelo Castro (MDB) aparece visitando um hospital na cidade de São Raimundo Nonato, no interior do Piauí, onde estão sendo atendidos idosos que sofrem de catarata, um mal que pode levar à cegueira. O parlamentar é signatário de uma emenda que destinou 66 milhões de reais ao governo do estado para a realização de mutirões de atendimento aos doentes em várias cidades.
O deputado federal Castro Neto, filho do senador e signatário da mesma emenda, também estava na solenidade, além do prefeito do município e de outras lideranças locais. Em ano de eleição, eventos como esse são muito concorridos. Os políticos cumprimentaram os idosos, tiraram fotos e discursaram. Em frente ao hospital, totens com o nome do senador e do filho em destaque anunciavam o início do programa, que vai garantir a realização de 35.000 consultas e 28.000 cirurgias em onze cidades do estado. “Essa é uma ação importante, com um impacto positivo, que irá beneficiar mais de 1.000 pessoas da microrregião de São Raimundo Nonato que sofrem com este problema de catarata e nunca fizeram um tratamento cirúrgico pela falta de condições financeiras. Numa parceria com o governo estamos proporcionando milhares de cirurgias de catarata no estado do Piauí”, destacou o senador. Em princípio, também não há nada de errado nisso. É o mínimo que os eleitores esperam de seus representantes no Congresso.
O problema neste caso é outro. Sem uma rede capaz de realizar todos os atendimentos, o governo do Piauí realizou uma licitação e terceirizou o serviço, contratando uma empresa especializada para fazer as consultas e as cirurgias. O Ministério Público Federal viu algumas coisas estranhas no processo — a começar pelo preço. A vencedora, a empresa Hospital da Visão do Meio Norte, está cobrando do estado o equivalente a 2.300 reais a cada cirurgia realizada, duas vezes e meia a mais do que a tabela do SUS paga às clínicas que realizam o mesmo tipo de procedimento.
Chamou atenção também o fato de que as cirurgias serão realizadas nas dependências de hospitais públicos. Ou seja, a empresa não vai ter custos com instalações, pessoal de apoio e material. Para complicar, além da suspeita de superfaturamento, os procuradores encontraram evidências de direcionamento no edital da licitação, que teria beneficiado um único concorrente.
O caso ganha um tom a mais de cinza quando se verifica o nome — na verdade o sobrenome — do dono da empresa supostamente beneficiada. Ele é o cirurgião Thiago Castro, sobrinho de Marcelo de Castro e primo do deputado Castro Neto. Mais um detalhe curioso: até 2021, uma das sócias do Hospital Visão do Meio Norte era Maria José da Costa e Castro, irmã do senador e mãe de Thiago. Se tudo isso não for obra do acaso, se estaria diante de uma situação nada republicana: um senador e seu filho deputado mandando milhões de reais para um programa de saúde superfaturado com um parente lucrando na outra ponta.
Para Marcelo Castro, ex-presidente da Comissão Mista de Orçamento do Congresso, é tudo coincidência. O senador garante que soube há pouco tempo desse aparente conflito de interesses. “Foi um assessor que me disse que meu sobrinho estava participando do mutirão”, minimizou, ressaltando que a responsabilidade pela contratação é do governo do Piauí, comandado pelo PT. PT e MDB são aliados políticos no estado.
Diante das evidências, o Ministério Público abriu um inquérito para apurar se houve superfaturamento de preços e direcionamento da licitação que contratou o Hospital da Visão do Meio Norte. Os procuradores também recomendaram a suspensão do contrato com a empresa do sobrinho do senador até que as suspeitas sejam devidamente esclarecidas. De forma inusitada, o governo piauiense simplesmente negou o pedido e também não quis se manifestar sobre o episódio. Perguntado sobre o caso, o deputado Castro Neto justifica a coincidência usando o mesmo argumento do pai: “Não sou eu quem faz a licitação”. Já o cirurgião Thiago Castro, indagado sobre as suspeitas, preferiu tergiversar: “Não estou sabendo disso, não”. Apressado, ele interrompeu a ligação antes de ouvir a pergunta óbvia, constrangedora e difícil de responder que seria feita na sequência. Compreende-se. O médico, afinal, é um profissional de visão.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892