Nos últimos três anos, o Congresso esteve no epicentro de uma barulhenta polêmica. Pela lei, cabia aos deputados e senadores a definição sobre o destino de recursos da União para áreas como saúde e educação. Uma mudança nas regras aprovada em 2019 deu ao relator da Comissão de Orçamento poderes para atender demandas sem a necessidade de identificar o verdadeiro interessado. Em outras palavras, o relator podia enviar verbas públicas para uma determinada cidade, omitindo o nome do padrinho político — que podia ser ele mesmo, um prefeito ou alguém que, por razões quase sempre pouco republicanas, preferia se manter anônimo. Essa modalidade ficou conhecida como “orçamento secreto”, esteve na raiz de diversas fraudes detectadas pela Polícia Federal ao longo desse tempo e, suspeita-se, foi usada como moeda de troca para aprovar projetos de interesse do governo. Na segunda-feira 19, numa votação dividida, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou o mecanismo inconstitucional. A decisão provocou o primeiro abalo nas relações entre o presidente eleito, os congressistas e os ministros da Corte.
Pelas regras até então em vigor, deputados e senadores teriam 19 bilhões de reais do Orçamento para enviar às suas bases eleitorais em 2023, sem a necessidade de seguir qualquer critério técnico ou de transparência. Com a decisão do STF, o secretismo acabou. Para o ano que vem, os parlamentares continuarão definindo o destino de parte dos recursos, só que agora mais às claras, sem a intermediação do relator. Já o abalo se deu por conta de um acordo que havia entre Lula e os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco. Na campanha eleitoral, o candidato do PT classificou o orçamento secreto como o maior “esquema de corrupção da história”, prometeu acabar com o mecanismo se fosse eleito, mas depois recuou. Em troca desse recuo, os parlamentares se comprometeram a aprovar a chamada PEC da Transição, medida que permite ao futuro governo gastar o que não tem. Os dois lados sairiam ganhando.
O voto decisivo contra o orçamento secreto veio do ministro Ricardo Lewandowski, indicado ao cargo por Lula. Arthur Lira, por essa razão, viu digitais do presidente eleito no veredito do STF. O magistrado já havia confidenciado a outros ministros as restrições que tinha em relação ao orçamento secreto. Apesar disso, os parlamentares acreditavam que Lewandowski, pela proximidade com os petistas, votaria pela manutenção do mecanismo. A reação ao veredicto foi imediata. “Na Câmara externamos, reclamamos e marcamos posição, mas o Senado pode fazer o impeachment de ministros do Supremo. Está na Constituição”, disse, em tom de advertência, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros. Um novo acordo entre Lula e Lira evitou o que poderia ser a primeira crise de um governo que ainda nem começou. Dessa vez, os dois lados perderam um pouco. O futuro governo não conseguiu uma autorização mais longa para furar o teto e o Congresso abriu mão do controle absoluto sobre uma parte dos recursos do orçamento.
No dia seguinte à decisão do STF, os parlamentares embutiram na PEC da Transição as novas regras para a aplicação dos recursos antes destinados às tais emendas do relator. O arranjo procurou atender a todos — governistas, oposicionistas e futuro governo. Os 19 bilhões foram divididos entre o Executivo e o Congresso. Deputados e senadores, portanto, terão no ano que vem quase 10 bilhões de reais a mais para enviar aos seus redutos eleitorais. A outra metade ficará a critério do Executivo, podendo ser destinada — em tese — para investimentos em áreas que o futuro governo achar mais apropriadas ou convenientes. Em tese porque a indicação para a aplicação desses recursos continuará cabendo ao relator da Comissão de Orçamento, o que abre o caminho nem sempre muito reto para “negociações políticas”. O dispositivo aprovado permite, por exemplo, que um parlamentar indique a construção de um hospital em seu reduto eleitoral, sem que ele apareça como o beneficiado, já que formalmente a recomendação caberá ao relator. Como a execução dessa parte do orçamento não será obrigatória, o governo decidirá se libera ou não o dinheiro para o tal hospital. Ou seja, na prática a verba poderá ser usada para premiar um aliado, recompensar um opositor ou simplesmente comprar apoio político — o velho e conhecido toma lá dá cá.
Publicado em VEJA de 28 de dezembro de 2022, edição nº 2821