Jair Bolsonaro tornou-se um fenômeno (ou um “mito”, como preferem seus seguidores) em grande parte graças à capacidade de se comunicar de forma simples e eficiente com sua base de eleitores — um talento amplificado pelas redes sociais. Na campanha, bravatas e afirmações beligerantes pavimentaram seu caminho até o poder. Ocorre que, 57 milhões de votos depois, com a faixa verde-amarela no peito, transitando entre as emas do Palácio da Alvorada e assinando documentos oficiais com sua caneta Compactor, o novo presidente continua se comunicando, em entrevistas ou por redes sociais, com a imprudência do candidato. E tem de ser corrigido pela própria equipe. Em apenas dez dias de governo, o presidente foi aberta e publicamente desmentido três vezes por subordinados. Trata-se de um caso peculiar de um chefe do Executivo que, recém-empossado, em vez de agir como o pacificador dos ímpetos de sua corte, como tem sido praxe em início de governo desde a redemocratização, é ele mesmo a fonte de tensões e divergências.
As declarações desmentidas dizem respeito à área que Bolsonaro reconhecidamente não domina: a economia. Em entrevista ao SBT, no dia 3, ele disse ser favorável a uma transição previdenciária que partisse da idade mínima de 57 anos para mulheres e de 62 anos para homens — patamar mais baixo do que o proposto (e enterrado) no governo de Michel Temer. O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, desmentiu o afrouxamento da reforma em uma coletiva de imprensa. No dia seguinte, o presidente afirmou que havia assinado um decreto que aumentava o imposto sobre operações financeiras (IOF). Questionado sobre o tema, o secretário da Receita, Marcos Cintra, insinuou que Bolsonaro não sabia o que dizia. “Deve ter sido alguma confusão. Ele não assinou nada”, garantiu. No mesmo fôlego, o presidente anunciara um plano de redução da alíquota mais alta do imposto de renda de 27,5% para 25%, também desmentido por Lorenzoni. Eis aí Jair Messias, negado três vezes por seus apóstolos.
Os incidentes não domesticaram a extroversão presidencial. Bolsonaro seguiu dando declarações desencontradas sobre a transferência da embaixada brasileira em Israel, de Tel-Aviv para Jerusalém, sobre a hipótese da criação de uma base militar americana no Brasil — ideia cara ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, reconhecido devoto do “Deus Trump” — e sobre a extinção da estatal de comunicação EBC. Nesses casos, o “não é bem assim” coube aos ministros-generais, Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo, e Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (leia quadro de exemplos abaixo).
Em outra derrapada, Bolsonaro compartilhou o tuíte em que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, criticava um contrato firmado pelo Ibama com uma empresa de locação de carros. O presidente acrescentou seu toque pessoal à manifestação do ministro: “Estamos em ritmo acelerado, desmontando rapidamente montanhas de irregularidades e situações anormais que estão sendo e serão COMPROVADAS e EXPOSTAS”. Bravatas como essa, assim em maiúsculas, eram quase inofensivas quando o tuiteiro era apenas deputado federal, mas um presidente da República só pode falar de “irregularidades comprovadas” quando elas são efetivamente comprovadas. Bolsonaro parece ter compreendido isso: apagou o tuíte leviano. A presidente do Ibama, Suely Araújo, que já estava de saída, pediu exoneração imediata do cargo.
Tropeços, cabeçadas e desacordos são comuns em qualquer governo, sobretudo nas primeiras semanas, quando as novas equipes se ambientam na complicada máquina administrativa. Ao longo do mandato, muitas vezes persiste uma natural tensão entre a área econômica, que tem a chave do cofre, e os ministérios que desejam mostrar serviço — ou seja, gastar. No governo Fernando Henrique Cardoso, eram notórias as divergências entre José Serra, então ministro do Planejamento, e Pedro Malan, titular da Fazenda. No governo Lula — cujos primeiros dias foram de um amadorismo constrangedor —, o grupo de Antonio Palocci, da Fazenda, vivia às turras com a turma de José Dirceu, na Casa Civil, e com o vice-presidente José Alencar, que sempre advogou, de forma irresponsável, a queda da taxa oficial de juros. Numa mistura de improviso com desconhecimento técnico, no primeiro semestre de 2003, Alencar afirmou que a Selic deveria ser decidida na “esfera política”. Levou uma reprimenda pública do então presidente, que, ao menos naquela época, se dizia contra “resolver juros com bravatas”.
São choques naturais em qualquer governo. Mas os antecessores de Bolsonaro em geral atuavam com a autoridade que o cargo lhes conferia, buscando evitar ou amainar as cabeçadas entre seus subordinados. No governo atual, ao contrário, as cabeçadas começam pelo próprio chefe do Executivo, e são os seus comandados que servem como barreira de contenção para seu estilo impulsivo, como se viu nas três ocasiões em que Bolsonaro disse impropriedades sobre matéria econômica. Esse comportamento é agravado pela flagrante inexperiência da equipe. “A nata desse governo está em seu primeiro emprego. Não conhecem muito bem os cargos que ocupam”, diz Lucas de Aragão, da consultoria Arko Advice. Até o general Augusto Heleno, que emendou algumas batatadas de seu chefe, demonstrou certo despreparo ao ser questionado por jornalistas sobre as tradicionais metas para os 100 primeiros dias de governo. “Cobrem dele, não é minha função”, afirmou, apontando Onyx Lorenzoni. Mas o ministro da Casa Civil fez ainda pior: ao empreender uma cruzada de “despetização” em sua Pasta, desarticulou o corpo técnico que elaborava pareceres. Saiu prejudicada a análise da Casa Civil sobre o decreto que prorroga até 2023 benefícios fiscais para as regiões Norte e Nordeste. E foi justamente para compensar esses benefícios que Bolsonaro pensou em aumentar o IOF. As trapalhadas, como se pode constatar, vêm em cascata.
Enquanto a equipe econômica chefiada por Paulo Guedes se esforçava para conter os danos causados pelas declarações do presidente, Bolsonaro não arrefeceu os disparos em sua conta no Twitter. Destratou a imprensa e rebaixou-se respondendo a provocações do candidato derrotado Fernando Haddad, do PT. Em um confuso episódio no qual os novos mandatários colidiram com a equipe que acabava de sair, o Twitter presidencial dirigiu sua ira à imprensa. Na quarta-feira 9, um edital do Ministério da Educação com mudanças nas regras do Programa Nacional do Livro Didático, como flexibilizar normas que podem acarretar erros nesses livros, foi revogado pelo novo ministro, Ricardo Vélez Rodriguez. O Estado de S. Paulo publicou uma entrevista em que o ex-ministro da Educação de Temer, Rossieli Soares, creditava as mudanças no edital à equipe de transição do novo governo. “A credibilidade jornalística se constrói com a verdade e não com a integralidade de seu tempo tentando ludibriar o leitor. Lamentável!”, disparou Bolsonaro, em seu estilo de redação tipicamente convoluto.
Curiosamente, durante a campanha era o capitão Bolsonaro que disciplinava sua tropa, contendo declarações politicamente danosas. Quando o candidato a vice Hamilton Mourão aventou a possibilidade de extinguir o 13º salário, e Paulo Guedes falou em ressuscitar a CPMF, o cabeça da chapa tomou as rédeas do discurso e impôs um período de silêncio a seus colaboradores. Hoje, são os seus excessos que precisam ser contidos. O voluntarismo de Bolsonaro tem um modelo no irmão do Norte: o presidente é grande admirador do americano Donald Trump, o mais notório praticante da estratégia de governar pelo Twitter. Há, no entanto, uma diferença em relação a Bolsonaro: Trump é sabidamente um mitômano. O jornal The Washington Post mantém um monitor de mentiras e falsidades presidenciais, ditas em entrevistas ou pelo Twitter. Computou mais de 7 600 inverdades desde o início do mandato, em 2017. O auge se deu no ano passado: em média, o presidente americano fez quinze declarações falsas por dia. Bolsonaro opera pelo exagero e pela distorção de alguns fatos — o tão debatido “kit gay” do governo Dilma, que nunca existiu, é um bom exemplo —, mas ele não é esse mentiroso compulsivo.
O Twitter é uma novidade no governo. Dilma Rousseff fez um uso comparativamente discreto da rede social. Michel Temer, homem de outra era, preferia as cartas, mas buscou atualizar-se no fim do mandato como presidente. Divulgava, nas redes sociais, vídeos em que respondia a críticos, inclusive antigos aliados como os tucanos Geraldo Alckmin e João Doria. A tática teve efeito contrário — foi o estilo um tanto empolado de Temer que virou piada. No folclore da República, tornou-se célebre um meio de comunicação inusitado: os bilhetes do presidente Jânio Quadros. O hábito de mandar recados e ordens para os subordinados por notas manuscritas começou quando ele era prefeito de São Paulo. Ao se tornar presidente, em 1961, Jânio percebeu que a tática chamava a atenção da imprensa e intensificou seu uso — havia aí certo jogo de cena. A renúncia, no mesmo ano da posse, foi comunicada formalmente ao Congresso — por carta.
Não se devem culpar os novos meios tecnológicos: as falas desencontradas de Bolsonaro ocorreram, na maior parte, em declarações verbais. Mas a ligeireza dessas declarações é típica do ambiente das redes sociais, em que tudo costuma ser dito sem moderação. Bolsonaro não parece consciente, pelo menos até agora, do peso de um cargo no qual sua opinião ligeira sobre o negócio da Embraer com a Boeing tem impacto na Bolsa: as ações da empresa brasileira caíram 5%, e subiram 2% depois que o general Heleno esclareceu que o governo não tem planos de interferir no negócio.
A comunicação deficiente revela três falhas que poderiam ser corrigidas com facilidade: o desalinhamento entre as opiniões do presidente e as avaliações de seus ministros; a falta de um porta-voz apto a unificar o discurso; e o voluntarismo presidencial. Por ora, as derrapadas não causaram dano maior. Apesar das idas e vindas no tema crucial da Previdência, o governo ainda conta com a confiança do mercado: o índice Bovespa renovou recordes, chegando a fechar em 93 000 pontos na quarta-feira, e o dólar desabou ao seu menor valor em mais de dois meses. Historicamente, a duração da confiança em um novo governo não costuma passar de 100 dias. É bom que Bolsonaro encontre o alinhamento com seu ministério. A economia brasileira é frágil e pode não aguentar o solavanco de um bilhete mal escrito.
Publicado em VEJA de 16 de janeiro de 2019, edição nº 2617
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