Um dos episódios mais marcantes da história da União Nacional dos Estudantes (UNE) aconteceu em 1968. Proscrita, a entidade ousou desafiar o governo militar e convocou um congresso que seria realizado na cidade de Ibiúna, no interior de São Paulo. No dia marcado, a polícia apareceu e prendeu todos os participantes, entre eles dirigentes que mais tarde se tornariam lideranças políticas conhecidas, como o ex-ministro José Dirceu. Depois desse episódio, o regime endureceu ainda mais, dando início ao período mais brutal da ditadura. Com a restauração da democracia, a UNE perdeu certos referenciais, especialmente após a chegada de Lula ao poder, em 2003. Desde então, a entidade decidiu se associar informalmente ao governo, agraciada com cargos e verbas oficiais — muitas verbas. Recebeu mais de 13 milhões de reais apenas em convênios assinados com diferentes órgãos da administração federal nas duas primeiras gestões petistas. A parceria chapa-branca, no entanto, teve de ser interrompida.
Em 2011, durante o governo de Dilma Rousseff, o Tribunal de Contas da União (TCU) realizou uma auditoria e descobriu que havia irregularidades na prestação de contas dos convênios, mais de 6 milhões de reais em valores da época. Em um deles, assinado com o Ministério da Cultura, chamou atenção o fato de o dinheiro ter sido usado para pagar despesas com festas, bebidas e diárias de hotel. Os técnicos também inspecionaram a prestação de contas dos recursos que o governo Lula repassou à entidade para reconstruir sua sede, no Rio de Janeiro, incendiada durante a ditadura. A UNE recebeu mais de 44 milhões de reais dos cofres públicos a título de indenização pelos danos, mas a obra não avançou. Desde 2011, a entidade está inscrita no cadastro de inadimplentes e, consequentemente, proibida de receber verbas oficiais. Nada, no entanto, que não pudesse ser contornado. Com a volta de Lula ao poder, a parceria foi restabelecida.
Para driblar a proibição, os convênios agora estão sendo assinados com o Instituto Circuito Universitário de Cultura e Arte (Cuca), entidade que, embora vinculada à própria UNE, tem um CNPJ diferente. O Cuca já recebeu mais de 4 milhões de reais dos ministérios do Desenvolvimento Social, da Cidadania e da Cultura, recursos que deverão ser aplicados em um curso de empreendedorismo para jovens (100 mil reais), na organização do congresso anual dos estudantes (1,3 milhão) e no fomento à cultura (2,3 milhões). A UNE recebeu dinheiro de todos os governos — de Fernando Henrique Cardoso (1 milhão) a Jair Bolsonaro (1,6 milhão) —, mas nada comparável aos governos Lula (61 milhões). “O movimento estudantil de meu tempo estava interessado em mudar o Brasil e o mundo, e nossa agenda era orientada pela esperança de um nacionalismo que combinasse liberdade e direitos sociais”, diz Aldo Rebelo, que presidiu a entidade no início da década de 80. “Hoje isso mudou”, afirma.
A UNE, de fato, foi importante na luta pela democracia antes, durante e até mesmo algum tempo depois da ditadura. Em 1992, por exemplo, os estudantes estiveram na linha de frente da mobilização popular que resultou no impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. O mesmo ímpeto, porém, desapareceria décadas mais tarde. Já capturada pelos governos petistas, a UNE foi contra o impeachment de Dilma Rousseff, esteve ao largo dos históricos protestos de 2013 e passou a servir a interesses partidários de ocasião. Hoje, ao mesmo tempo que recebe dos cofres públicos vultosas quantias para organizar festivais universitários e exposições, a entidade se dedica a engrossar atos contra a política de juros e pela saída do presidente do Banco Central. São pautas claramente governistas. “Quando a UNE se alia a qualquer governo, perde a legitimidade para criticar os erros”, ressalta Rebelo.
A presidente da UNE, Manuella Mirella, discorda das críticas. Segundo ela, não existe aliança ou parceria entre o governo petista e a entidade. “A UNE está alinhada com a defesa dos estudantes e da democracia, bandeiras históricas da entidade. No último período, protagonizamos a construção de uma frente ampla institucional pela derrota do projeto de extrema direita do Bolsonaro, que destruiu a educação durante os quatro anos de governo”, destacou. Os protestos contra o Banco Central, segundo ela, são em defesa do interesse da população. “A independência do Banco Central é ruim, pois prioriza o mercado e o lucro dos banqueiros em detrimento dos desafios de desenvolvimento do Brasil”, explica a líder estudantil, que foi nomeada na última quarta-feira, 26, como membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social, órgão de assessoramento do presidente da República. A luta continua, mas a motivação da UNE, sem dúvida, já não é mais a mesma.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899