Com quase 13 milhões de eleitores, o Rio de Janeiro é um território-chave em qualquer disputa presidencial. Há duas décadas, o estado costuma refletir a preferência da população em âmbito nacional: nunca, desde então, o novo ocupante do Planalto deixou de vencer no terceiro maior colégio eleitoral do país. Em 2018, Jair Bolsonaro massacrou seu adversário, o petista Fernando Haddad, amealhando quase 70% dos votos em seu berço político. Pois agora é Lula quem aparece na frente, mas o que parecia uma situação razoavelmente confortável não é. O páreo está cada vez mais apertado. Nos últimos três meses, a diferença pró Lula, que era de 14 pontos, recuou para apenas 7, de acordo com um recente levantamento do Ipec, o antigo Ibope.
O cenário põe em alerta a campanha do PT, que corre para traçar estratégias com o objetivo de frear a tendência delineada pelas pesquisas e turbinar Marcelo Freixo (PSB), o candidato apoiado pelo partido, hoje atrás de seu principal oponente, o governador Cláudio Castro, do PL de Bolsonaro. Um dos grandes obstáculos enfrentados pelos petistas é a bolha bolsonarista, mais difícil de furar no cenário fluminense do que em outros lugares, dadas certas circunstâncias locais. O Rio é campeão em dois estratos que tendem a se identificar com o pensamento conservador: tem a maior concentração do país de pessoas com idade superior a 60 anos, tradicionalmente mais propensas ao caldo à direita, e de evangélicos, que representam 31% no Rio versus 26% no Brasil.
Como se sabe, nesse nicho Bolsonaro faz a festa. Atualmente, ele conta com mais do que o dobro das intenções de voto que Lula no estado (51% a 24%). O bolsonarismo também se espalha nas fileiras adeptas do discurso de enfrentamento do crime à base do uso excessivo da força — o que, aliás, o governador Castro vem reforçando com violentas operações em série nas últimas semanas. “O Rio caminha para ser ideologicamente a Flórida brasileira”, avalia o economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da FGV-RJ, comparando o Rio com as praias ultraconservadoras do estado americano.
Única fatia em que o presidente se encontra na dianteira em todo o país, os evangélicos estão na mira da campanha no Rio, que quer frear qualquer investida petista nesse naco vital do eleitorado. No próximo dia 13, Bolsonaro planeja comparecer à Marcha para Jesus, evento evangélico de alta mobilização, cuja previsão é reunir 100 000 pessoas na Praça da Apoteose. Seu principal cabo eleitoral, Cláudio Castro, claro, estará por lá, intensificando a tática de se fazer cada vez mais presente nos cultos. Nessas ocasiões, não perde a chance de entoar louvores, mesmo ligado à linha carismática da Igreja Católica. O governador até anda providencialmente com dois violões no carro para dar suas palinhas. Já Lula vem sendo demonizado por pastores de alta influência, que bradam contra a legalização do aborto e o casamento gay, como se fossem essas as bandeiras petistas. “Para Lula, empatar nessa faixa do eleitorado já seria uma vitória”, diz o cientista político Felipe Nunes, CEO do instituto de pesquisas Quaest.
Outro entrave ao crescimento do ex-presidente é de ordem geográfica. A campanha já detectou que Lula não consegue conquistar votos em determinadas áreas bem demarcadas no mapa. Uma das razões tem relação direta com as milícias, organizações criminosas que preservam sob seu domínio inacreditáveis 2 milhões de habitantes, um terço do total que vive na capital. Há quatro anos, Bolsonaro cravou nessas regiões 60% da preferência do eleitor. Justamente aí, Freixo, apoiado pelo PT, tem dificuldade de fazer campanha, já que, no passado, capitaneou a CPI das Milícias e ficou conhecido como adversário dessas quadrilhas, capazes do impensável: elas têm o poder de impedir ou liberar a entrada de um político no território onde fincam bandeira. “Qualquer candidato precisa da autorização dos líderes locais para pedir votos ali”, explica o antropólogo Paulo Storani, ex-capitão do Bope.
Uma fonte adicional de preocupação, sobretudo da ala petista fluminense, é a avaliação, ancorada em pesquisas, de que Freixo estaria próximo de seu teto histórico, de 25% do eleitorado, concentrados na Zona Sul carioca. Lula precisa de mais que isso para vencer no berço do clã presidencial. É para ampliar o leque que um grupo liderado pelo ex-prefeito de Maricá Washington Quaquá tem cortejado o prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD) — ele inclusive já declarou o voto no ex-presidente. A ideia dessa turma é que Paes entre na coordenação da campanha de Lula. Mas há um detalhe: o alcaide quer emplacar Rodrigo Neves, do PDT e adversário de Freixo, no Palácio Guanabara.
O nó poderia ser desatado se Lula fizesse o jogo do palanque duplo. “Só depende da vontade do ex-presidente e de um afago a Paes”, garante Quaquá. Também a frágil aliança entre PT e PSB no Rio reserva um enrosco à parte. O acordo era que, com os pessebistas à frente da chapa, encabeçada por Freixo, a vaga para o Senado seria do petista André Ceciliano, presidente da Assembleia Legislativa. Mas Alessandro Molon, do PSB, não arreda pé de sua candidatura, elevando a fervura de uma pendenga que deve ser resolvida até sexta-feira 5, data-limite para as convenções partidárias. Por ora, ninguém dá sinais de ceder. “Na terra do Carnaval, era para a campanha desfilar em harmonia, mas sempre tem uma ala disposta a atravessar o samba”, faz metáfora um dirigente petista. Se quiser ganhar no Rio, Lula terá de rebolar.
Publicado em VEJA de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800