Vida que segue: a rotina de Queiroz enquanto espera decisões da Justiça
O policial militar aposentado malha em condomínio no subúrbio do Rio; já Flávio Bolsonaro compra uma mansão de 5,97 milhões de reais em Brasília
É bem cedo, pela manhã, ou quando chega a noite que o ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz gosta de descer para a academia do prédio recém-construído onde mora, na Taquara, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Nesses horários, fica menor o movimento nas cercanias da piscina, em frente à sala de musculação, no térreo. O risco de ser visto cai, embora esse não seja um grande problema para ele. O policial militar aposentado não faz muita questão de andar às escondidas nem de camuflar o incômodo acessório — uma tornozeleira que carrega desde julho de 2020, quando deixou o complexo de Bangu, onde ficou 22 dias preso. Nem precisa, porque, afinal, todo mundo já sabe que há ali um morador conhecido do noticiário político-policial e amigo do presidente Jair Bolsonaro, que virou um tema quente do grupo de WhatsApp do condomínio quando chegou para cumprir prisão domiciliar ao lado da mulher, Márcia Aguiar, ambos denunciados no caso da rachadinha, um esquema de desvio de salários de servidores no gabinete de Flávio Bolsonaro quando ele era deputado estadual. Depois dos primeiros dias do retorno do agora ilustre vizinho, a discrição tomou conta dos moradores e poucos hoje topam falar sobre ele. O ex-braço direito do Zero Um só pode deixar o apartamento para ir ao encontro dos pesos e halteres, direito após sua defesa alegar que ele, operado no ombro, precisava fazer exercícios de fisioterapia.
A decisão que Queiroz espera ansiosamente da Justiça, no entanto, é outra: a revogação da sua prisão e a anulação completa da investigação sobre o episódio. O caso veio à tona em dezembro de 2018, por meio de um relatório do Coaf que apontava movimentações suspeitas de ao menos 1,2 milhão de reais do ex-PM. A crise subiu de tom em abril de 2019, já com Bolsonaro presidente, quando o juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 27ª Vara Criminal do Rio, determinou a quebra dos sigilos bancário e fiscal de Queiroz, Flávio, sua esposa, Fernanda, e dezenas de outros ex-assessores. Tudo isso, porém, começou a ruir no último dia 23. Nessa data, por 4 votos a 1, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou a decisão da primeira instância, alegando que ela não havia sido fundamentada, o que foi considerada a principal vitória dos investigados até agora. O maior triunfo, no entanto, ainda poderá vir do julgamento de outros dois recursos — que estava previsto para terça-feira 2, e foi adiado. Eles podem anular o compartilhamento dos dados pelo Coaf, todas as decisões judiciais tomadas (já que Flávio conseguiu mudar o foro para o Tribunal de Justiça) e a prisão de Queiroz e Márcia, detidos desde que o ex-PM foi encontrado em junho pela polícia em um sítio em Atibaia (SP), pertencente a Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro. A depender do sucesso da defesa, pode ir para o lixo toda a denúncia feita pelo MP em novembro de 2020, na qual o senador é acusado de chefiar um esquema que movimentou 6,1 milhões de reais e que teria Queiroz como seu operador financeiro.
Enquanto o ex-assessor espera a decisão que pode lhe dar a liberdade, o seu ex-chefe se sentiu à vontade para continuar protagonizando negócios suspeitos. No fim de janeiro, ele comprou por 5,97 milhões de reais uma mansão no setor Dom Bosco, no Lago Sul, região nobre de Brasília. O imóvel, de 1 100 metros quadrados construídos, tem dois pisos. No térreo, há salas de estar e jantar, com pé-direito duplo, escritório, lavabo, home theater, cozinha, um espaço gourmet, uma ampla varanda com vista para o Lago Paranoá, duas lavanderias (coberta e descoberta) e três dependências de empregados. O piso superior abriga quatro suítes — a máster tem hidromassagem —, brinquedoteca, closet e uma academia. Na área externa ficam uma piscina com deque e iluminação de LED, um spa com aquecimento solar, banheiros, depósito, quatro vagas de garagem cobertas e outras quatro descobertas.
Ao que tudo indica, o negócio milionário foi feito com cuidado para não chamar atenção no momento em que o Zero Um encontra-se sob suspeita por ter engordado o patrimônio de forma ilícita. Mas o caso acabou vindo à tona na última segunda, 1º, revelado pelo site O Antagonista. Apesar de ficar em Brasília, o imóvel foi registrado em um cartório em Brazlândia, que fica a 45 quilômetros da capital. Parte da compra acabou sendo paga à vista e o restante dividido em 360 meses, a uma taxa camarada de juros: 3,65% ao ano, financiada pelo Banco Regional de Brasília. Segundo o senador, o pagamento da fração à vista foi feito “com recursos próprios, em especial oriundos da venda de seu imóvel no Rio”, mas a declaração de bens dele apresentada à Justiça Eleitoral em 2018 indica um patrimônio pessoal de 1,74 milhão de reais, que incluía apenas um apartamento na Barra da Tijuca, no valor de 917 000 reais. O senador também vendeu a franquia de chocolates Kopenhagen que possuía, mas na mesma declaração ele a avaliou em 50 000 reais. A prestação assumida é de 18 744 reais mensais, com correção pelo IPCA. Para esse financiamento, o banco exige uma renda de 46 400 reais, mas o casal declarou ganhar 36 957 reais mensais, sendo 8 650 reais dela (que é dentista) e 28 307 reais dele, segundo o contrato revelado pelo jornal Folha de S.Paulo — no seu último contracheque, de fevereiro, no entanto, o senador tinha salário líquido de 24 906 reais.
Já Queiroz acompanha a desenvoltura imobiliária do ex-chefe de um apartamento de 60 metros quadrados, em uma região de milícias no Rio de Janeiro, comprado por ele poucos meses antes de o caso da rachadinha vir a público. Apesar da dinheirama que passou por suas contas, ele financiou 80% do imóvel de 356 000 reais pela Caixa. Antes do escândalo, Queiroz costumava tomar uma cerveja na piscina ou encontrar amigos no salão de jogos. Hoje, suas idas mais frequentes são à varanda. Dar um mergulho agora é atração apenas para as filhas, vistas até com certa frequência na piscina ou quando levam o cachorro da raça chow-chow para passear na área pet. O residencial tem ainda brinquedoteca, churrasqueira, espaço com redes, sauna a vapor e spa. Os cerca de 600 reais da taxa de condomínio garantem ainda uma segurança reforçada aos moradores dos dois blocos, com câmeras por todos os lados e porteiros atentos, que, no caso do ex-assessor de Flávio, impedem que estranhos ou jornalistas interfonem diretamente para a sua casa. Quando a reportagem de VEJA pediu para chamá-lo, funcionários relataram que não tinham autorização para isso.
Os contatos de Queiroz hoje se resumem a sua família — as duas filhas do primeiro casamento, Nathália e Evelyn, ex-assessoras de Flávio e também denunciadas pelo MP, o visitam com frequência. “A mulher dele às vezes também vai para a academia, mas agora quase não está descendo”, diz uma moradora. Vez ou outra, quem ajuda o ex-assessor com a série de exercícios é Nathália, que é personal trainer. “Quequê”, apelido que moradores usam para se referir a Queiroz, gosta de usar uma das duas esteiras, deixa a TV ligada ao fundo e, de bermuda, expõe a tornozeleira. Na decisão em que concedeu a prisão domiciliar, o ministro Gilmar Mendes, do STF, estabeleceu que eles não podem ter contato com outros investigados — exceto com os da família. Mesmo antes da prisão, o ex-assessor já tinha abandonado os grupos de amigos no WhatsApp. Quem quer saber como ele está entra em contato com os filhos. Aos poucos, Nathália retomou a vida on-line após meses “desaparecida” do Instagram, onde tem quase 11 000 seguidores. Publica vídeos e fotos com sua rotina de aulas, mas nada do pai. “Estou bem e voltando aos pouquinhos. Respeitando o meu tempo”, escreveu recentemente.
A vida restrita de Queiroz pode estar chegando ao fim, porque a tendência é de que no próximo julgamento o STJ decida a favor dele e dos outros acusados, já que quase todas as provas foram obtidas a partir da quebra de sigilo, mesmo aquelas derivadas de busca e apreensão, perícias em celulares e interrogatórios. Deve prevalecer a tese dos “frutos da árvore envenenada”, uma teoria originária do direito americano segundo a qual todas as provas decorrentes de algo ilícito são contaminadas por esse vício. A defesa da quebra ilegal de sigilo foi feita pelo ministro João Otávio de Noronha, que é próximo ao presidente Bolsonaro e deu a liminar que mandou Queiroz e a mulher para casa (a liminar foi cassada pelo relator, Felix Fischer, e restabelecida por Gilmar Mendes). Resta ao MP refazer todo o trabalho, pedindo novamente as quebras contestadas e, a partir daí, oferecer uma nova denúncia ao Órgão Especial do TJRJ, que ainda não analisou a primeira acusação, que tem cerca de 300 páginas — Queiroz e Flávio foram denunciados por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Desde o início do mandato, o caso atormenta e tira do sério o presidente Bolsonaro. No último dia 24, quando visitava o Acre, ele terminou abruptamente uma coletiva ao ser questionado por um repórter sobre o que achava da última decisão do STJ. “Acabou a entrevista aí”, disse. Um novo desconforto surgiu com a recente divulgação do negócio imobiliário do primogênito. Incomodada com a repercussão, uma ala do governo pressionou o presidente para que desse uma repreensão pública em Flávio, o que não ocorreu. A torcida agora é para o caso não ganhar uma dimensão maior, a ponto de prejudicar o humor dos magistrados que voltarão a discutir o caso da rachadinha. Se não acontecer uma reviravolta, o mais provável é que Bolsonaro finalmente consiga dormir aliviado, enquanto o Zero Um curte o novo endereço e Queiroz vai finalmente pôr os pés para fora do seu prédio na Taquara.
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728