Sobram profetas anunciando que o coronavírus é uma praga apocalíptica e a Covid-19, um juízo de Deus contra a maneira irresponsável e predatória como a humanidade vive no universo. Há também quem pregou que um grande jejum comunitário e compartilhado nas redes sociais pudesse ser o remédio contra o problema. Antes de entrar nos pormenores de cada questão, é preciso entender historicamente a longa e complicada relação da religião com a ciência. Associar os fenômenos sociais e naturais a causas espirituais e sobrenaturais é próprio de todo sistema religioso. É importante ressaltar que a religião encara o mundo como um mistério que exige explicação e sabe que não é a ciência que pode revelar o que está oculto por trás do aparente. Essa compreensão da religião, entretanto, abre um fosso de distanciamento que coloca a fé e as crenças de um lado e a razão e a ciência no extremo oposto. Um abismo perigoso e que não precisa ser tão profundo.
Em sua obra As Formas Elementares da Vida Religiosa, o sociólogo francês Émile Durkheim esclarece que a religião se ocupa da “ordem de coisas que ultrapassa o alcance de nosso entendimento, o sobrenatural, o mundo do mistério, do incompreensível. A religião seria, portanto, uma espécie de especulação sobre tudo o que escapa à ciência e, de maneira mais geral, ao pensamento claro”.
Explicar a ordem do universo natural a partir dos mistérios da sobrenaturalidade pode fazer alguma diferença em contexto de baixo desenvolvimento científico. Houve um tempo no qual as rupturas da ordem natural — períodos de seca quando se esperava chuva ou chuvas torrenciais fora do padrão, colheita escassa frustrando a expectativa de fartura, ou ter de lidar com pragas e pestes que destruíam os campos e as sociedades — podiam ser explicadas como ação dos deuses, ou mesmo de Deus, descarregando sua ira sobre o mundo. A mentalidade religiosa perdeu lugar à medida que o conhecimento científico foi domesticando a natureza. Para uma boa safra é melhor se fiar na tecnologia agrícola que no humor dos deuses. Contra pestes e pragas, Albert Sabin (que desenvolveu a vacina contra a poliomielite) e Alexander Fleming (descobridor da penicilina) ajudaram mais que rezas e quebrantos.
A noção de que a religião trata do que escapa à lógica racional e científica e explica aquilo de que a inteligência humana não dá conta sugere outro abismo perigoso — aquele que separa o racional do irracional. O passo seguinte é a condenação da religião como superstição de gente ignorante. Em termos simples, quanto mais ciência, menos religião; quanto mais esclarecimento, menos necessidade de fé; quanto mais iluminado ou ilustrado o mundo, menos supersticioso ele é, em tese.
Os profetas contemporâneos e os pastores que insistem em negar a voz da ciência em nome da fé prestam, portanto, grande desserviço à sua crença. Comprometidas em resguardar o papel da religião num mundo que o teórico social Max Weber chamou de desencantado, onde Deus é tido como hipótese desnecessária, as lideranças religiosas que pretendem combater o vírus com vigílias, orações e jejuns conseguem apenas reforçar a noção secular de que a experiência religiosa é mesmo para incultos e fanáticos.
“A necropolítica encontra em líderes religiosos de caráter duvidoso, ou mal esclarecidos, sua face mais nefasta”
Pastores que, apesar de todas as recomendações e orientações das autoridades competentes, insistem em manter seus templos abertos e dar continuidade a seus eventos e cultos expressam não apenas ignorância, como também atuam de maneira irresponsável e cruel, expondo seus fiéis e a própria sociedade à disseminação de um vírus que já se provou letal. A necropolítica encontra em líderes religiosos de caráter duvidoso, ou mal esclarecidos, sua face mais nefasta, pois é promovida em nome de Deus, em franca oposição às palavras de Jesus, que dizia: “Eu vim para que tenham vida”.
Paralelo parecido pode ser feito quando o assunto é a convocação para um jejum nacional no Brasil, ideia admirada por uns, rechaçada por tantos outros. Aos que desconhecem o hábito, tal convocação encontra contexto na Israel bíblica, quando um rei, que governava em um Estado teocrático e sob a autoridade religiosa dos sacerdotes, usava o período de abstinência de alimentos e de sacrifícios para apresentar a Deus seu arrependimento, livrando o povo, assim, de seu juízo. Falta a muitos religiosos, porém, um olhar atual sobre hábitos específicos do período registrado no Antigo Testamento da Bíblia. O Brasil não é um Estado teocrático, é um Estado democrático de direito. O Brasil não tem rei sob autoridade religiosa, mas um presidente eleito democraticamente, que governa sob a autoridade do pacto social expresso na Constituição. Como já dito, o flagelo que abate o Brasil e o mundo não é juízo de Deus contra a idolatria de seu povo. No Novo Testamento, o hábito do jejum foi ressignificado por Jesus como um ato de devoção íntima e pessoal, praticado no anonimato, e não com publicações nas redes sociais. Como diz o texto bíblico, o Pai (Deus), ao ver a oração íntima, recompensa aos seus — enquanto quem se vangloria de sua religiosidade busca somente o aplauso de homens. Reforço aqui: o caminho para a superação da pandemia passa pela submissão à autoridade da ciência e pelo rigor na observação das orientações e recomendações dos profissionais da saúde.
A cisão entre fé e ciência reflete mais ignorância que piedade. Atender às recomendações das autoridades governamentais, notadamente aquelas orientadas pelos profissionais da saúde, os especialistas e infectologistas, é uma expressão de sensatez e também uma forma de honrar a Deus. Pois, como bem disse Louis Pasteur, “um pouco de ciência nos afasta de Deus. Muito, nos aproxima”.
A religião não rivaliza com a ciência: assim como a fé não imuniza, também não existe vacina contra o preconceito, o egoísmo e a crueldade. Se é verdade, e assim creio, que o coronavírus deve ser enfrentado com boa medicina, e a superação da Covid-19 será inclusive uma conquista da ciência, também é verdadeiro que os suplementos de empatia, solidariedade, compaixão e misericórdia, necessários e heroicamente demonstrados por todos aqueles que se expõem ao risco para prover cuidado aos enfermos e vulneráveis, são qualidades que se encontram no coração dos que creem (ou intuem) que a vida descansa nos mistérios e virtudes do espírito humano e do Espírito divino. Assim é a fé saudável: não se fabrica em laboratórios nem se compra em farmácias.
* Ed René Kivitz, teólogo, é mestre em ciências da religião e pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682