No princípio era o clique: como as mais variadas doutrinas investem nas redes sociais
Elas divulgam seu credo, livres para escolher com quem e como seguir as pregações

Fiéis que visitavam recentemente uma capela em Lucerna, na Suíça, conseguiram falar com Jesus Cristo. Não foi uma aparição messiânica. Na verdade, o público presente no templo conversou com um avatar criado por inteligência artificial (IA), e do diálogo dirimiu dúvidas em torno da crença cristã. Esse robô é um bom exemplo de como a digitalização da fé é um fenômeno. Um dos campos mais férteis para a pregação são as redes sociais. Ali, brotam ofertas ecumênicas para as mais diversas vertentes espirituais, e muitas vezes os deuses coram de vergonha. No chinês TikTok, que por milagre ressuscitou nos Estados Unidos de Donald Trump, tem de tudo um pouco, de missas a homilias, de pregações e lugares-comuns. As hashtags #jesus e #islam, juntas, já ultrapassam 1,2 trilhão — trilhão! — de visualizações.
Há canais para todos os credos. No YouTube, um curso a distância promove formação em umbanda, a religião afro-brasileira que mistura o culto aos orixás com elementos de religiões ocidentais, que dá direito a certificado de conclusão. No Instagram, padres vendem desde viagens de peregrinação pela Europa — que se autopromovem rapidamente com o compartilhamento das imagens dos seguidores — até aulas sobre como se preparar para o fim do mundo, que virá, garantem eles. É uma revolução só comparável à de quando o alemão Johannes Gutenberg (1398-1468) criou o sistema ocidental de impressão por tipos móveis, escolhendo a Bíblia para ser o primeiro livro confeccionado pelo método inovador. Era um misto de obrigação com o seu empregador, o Sacro Império Romano-Germânico, e desenvolvida visão de futuro.

A aposta de Gutenberg foi certeira. Mais de 3,9 bilhões de exemplares bíblicos, em 3 000 idiomas, já foram vendidos no mundo. “Antes, os escritos sagrados estavam nas mãos só de pequenos grupos religiosos”, diz Silas Guerriero, professor da pós-graduação em ciência da religião, na PUC-SP. Tratava-se, naquele tempo, de conhecimento exclusivo do papa e de seus cardeais, guardado a sete chaves, em narrativa costurada com esmero e inteligência por Umberto Eco em O Nome da Rosa.
Com o tempo, é natural, depois de Gutenberg, vieram o rádio, a televisão e o computador. Casamentos, funerais e missas puderam ser transmitidos ao vivo ou em gravações de excelência. Hoje, contudo, houve salto exponencial — o que não significa a morte de folhetos e livros, que ainda pululam, e é bom destacar a existência, no Brasil, de uma editora, a Paulinas, fundada em 1931 e que segue firme no mercado. “Mas a religião, é bom saber, sempre esteve de mãos dadas com as revoluções midiáticas”, diz Ricardo Hida, pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor do livro Rituais Online.
Os efeitos são nítidos. O alcance da devoção eletrônica é imenso, e muita gente que jamais pisaria em teto religioso pode receber as mensagens. Cai também o distanciamento professoral e arrogante, e o linguajar simplificado pode ajudar a atrair, em resposta democrática. Vale lembrar ainda da relação íntima entre a atual onda e a pandemia de covid-19, que acelerou mudanças (leia a reportagem na pág. 58). Mesmo antes do distanciamento social imposto pelo vírus, as empresas, em geral, já tinham acelerado a chamada transformação digital. As igrejas, que também são negócios bem-sucedidos, seguiram a tendência. Nos lockdowns, as pessoas foram proibidas de frequentar reuniões sagradas para impedir a disseminação da doença. Rapidamente todas as vertentes abriram alguma extensão digital para atendimento, até aquelas que pareciam impossíveis de funcionar a distância. É o caso do espiritismo e da umbanda, que envolvem processos mediúnicos, mas hoje interagem por meio da máquina, seja um computador, seja um smartphone.

Direto ao ponto: as redes sociais empoderaram o chamado baixo clero, o que às vezes provoca ciumeira na alta hierarquia. Foi o que aconteceu com o padre presbiteriano mais famoso da França, Matthieu Jasseron, de 40 anos, com 1,2 milhão de seguidores no TikTok. No fim do ano passado, ele anunciou que havia pendurado a batina, criticado pelos superiores, que o consideravam vaidoso em demasia. “Tenho uma fé prática”, justificou. “Ao contrário da Igreja, que mais parece um partido político, onde vale mais o sucesso de quem manda do que fazer o bem comum.” No Brasil, entre os líderes de cliques religiosos está a budista Monja Coen, que reúne 3,2 milhões de seguidores — muitos deles católicos, espíritas, evangélicos e judeus, que se sentem livres nas redes para flertar com novos caminhos. Sem a necessidade de presença física e com o anonimato garantido, cada um constrói a própria prática religiosa, sem preconceito. É uma forma de professar a fé, sem se submeter a regras imutáveis. Há muito de pecado trafegando no mundo digital na forma de curandeirismo, daí a necessidade de separar o joio do trigo. Mas em um aspecto, sim, a velocidade da internet pode ser benfazeja: como púlpito moderno.
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932