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A ameaça das ‘fake news’

No ano de uma eleição presidencial imprevisível, 83% dos brasileiros já se preocupam com a enxurrada de notícias falsas que circulam na internet

Por Daniel Bergamasco, Eduardo Gonçalves, Ione Aguiar, Thiago Bronzatto
Atualizado em 4 jun 2024, 17h40 - Publicado em 12 jan 2018, 06h00

A Pepsi superou a Coca-Cola em vendas porque a imagem de Jair Bolsonaro passará a estampar as latinhas de refrigerante da marca. A “notícia”, publicada em 4 de dezembro no site News Atual, foi replicada em cinco páginas do Facebook com um total de 1,8 milhão de seguidores. Em poucos dias, ela teve mais de 20 000 curtidas e um número considerável de compartilhamentos. Era, obviamente, falsa — uma genuína fake news. Mas, como se vê, muita gente não só acreditou como passou a mentira adiante para depois, pelo menos em alguns casos, morrer de vergonha. Pesquisa exclusiva feita a pedido de VEJA pela consultoria Ideia Big Data, com 2 004 pessoas ouvidas por telefone entre 9 e 10 de janeiro, mostra que 83% dos entrevistados temem compartilhar notícias falsas em suas redes sociais e grupos de WhatsApp.

O levantamento, feito em 37 cidades das cinco regiões do país, mostra ainda que o cuidado em confirmar a veracidade das informações varia de acordo com a renda e a idade dos entrevistados. Nas classes mais altas, A e B, 52% e 46% afirmaram checar (muito ou sempre) se as notícias que divulgam nas suas redes são reais. Esse porcentual cai drasticamente, para 24% e 13%, nas classes D e E. Considerando-se o total dos entrevistados, sem levar em conta níveis de renda específicos, 63% das pessoas ouvidas afirmaram não se preocupar em checar a veracidade das notícias antes de compartilhá-las, ainda que a esmagadora maioria tenha receio de cair no conto do vigário. Por fim, o estudo mostrou que 45% dos brasileiros nunca ouviram falar em fake news — o que, evidentemente, não significa que não as tenham consumido.

A Tomada que virou Bíblia
A tomada que virou Bíblia – Uma das lorotas que se seguiram à sentença de Lula dada por Sergio Moro dizia que o juiz havia se debruçado sobre a Bíblia ao condenar o ex-presidente no caso do tríplex. A foto foi feita quando Moro procurava uma tomada sob a mesa em um evento. O autor da mentira é Fabrício Iachaki (no detalhe, seu perfil do Facebook) (André Dusek/Estadão Conteúdo)

Há dois tipos de propagadores de fake news à solta: militantes empenhados em atacar a reputação dos adversários políticos de seus candidatos e empresas ou indivíduos que fabricam notícias falsas com o intuito de ganhar dinheiro por meio dos anúncios — sobretudo vindos do Google AdSense, braço de publicidade do Google. Em resumo, tirando malucos e gente que não tem o que fazer, as fake news são disseminadas por pessoas interessadas em colher dividendos políticos ou pecuniários. VEJA examinou o conteúdo de doze sites conhecidos por difundir inverdades. Depois de analisar 534 notícias comprovadamente falsas divulgadas por esses sites, VEJA constatou que os alvos prediletos das mentiras são, pela ordem, o ex-presidente Lula, o presidente Michel Temer e o juiz Sergio Moro.

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(Arte/VEJA)

No ramo argentário, o site Sociedade Oculta é um exemplo de como o mecanismo das fake news opera — e prospera. A página, criada no ano passado pelo paranaense Fabricio Iachaki, divulgou algumas das notícias falsas mais compartilhadas do país. Entre elas estava uma em que o juiz Sergio Moro aparecia numa foto sentado em uma cadeira e curvado sobre a mesa. O texto dizia que o juiz estava debruçado sobre a Bíblia depois de ter anunciado a condenação de Lula — a foto era real, mas a intenção do magistrado com o gesto era bem outra: ele procurava uma tomada sob a mesa para recarregar seu laptop.

A VEJA, Iachaki disse que, originalmente, criou a página com o intuito de divulgar notas de grande apelo popular, mas que, quando experimentou publicar notícias falsas, sua audiência explodiu. O site chegou a ter, segundo ele, 12 milhões de acessos mensais. Graças aos anúncios do Google atraídos por sua alta audiência, Iachaki declarou ter chegado a faturar de 2 000 a 3 000 dólares por mês. Hoje, com a investida do Google e do Facebook para reduzir o alcance de páginas propagadoras de fake news, Iachaki afirma ter mudado seu “modelo de negócio”, começando por contratar um “jornalista profissional”. “Quero trabalhar com notícias sensacionalistas, mas reais”, diz. Em tempo: o nome Iachaki, apesar da semelhança com “e achaque”, é uma piada involuntária.
Punir um propagador de fake news ainda é uma tarefa complicada no Brasil. Na véspera das eleições de 2014, uma notícia da internet gerou um enorme burburinho no Espírito Santo. Um site que mimetizava um dos portais de notícias mais conhecidos do estado publicou o resultado de uma suposta pesquisa em que o então candidato à reeleição ao governo do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), aparecia com 52,3% dos votos enquanto seu concorrente, Paulo Hartung (MDB), corria atrás com 39,8%. Todas as outras pesquisas indicavam o contrário. A notícia falsa logo se alastrou pelas redes sociais. No dia seguinte, antes da votação, a equipe de Hartung desmentiu os boatos sobre a suposta virada e fez um comunicado de crime às autoridades. O caso virou uma investigação da Polícia Federal — uma das primeiras do país a envolver eleições e fake news. O inquérito, ao qual VEJA teve acesso, foi concluído apenas três anos depois, em junho do ano passado, com o indiciamento de um empresário apontado como o responsável pela notícia mentirosa e pela página que a difundiu. Ele foi indiciado por dois crimes eleitorais: divulgação de pesquisa fraudulenta e obstrução do exercício do voto. Se for condenado, poderá pegar até um ano e seis meses de prisão e receber multas que podem chegar a 100 000 reais.

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O caso capixaba será utilizado como referência pela força-tarefa criada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para combater as fake news nas eleições presidenciais deste ano. Até março, o TSE pretende baixar uma norma que estabelece punições para quem fabricar fake news ou propagá-las com o intuito de influenciar os eleitores. As regras ainda não foram definidas, mas a equipe do tribunal quer mirar em robôs que disseminam notícias falsas sobre candidatos, na publicidade direcionada nas redes sociais para espalhar informações difamatórias e em perfis falsos usados para popularizar posts negativos. Recentemente, a PF fez um pedido de cooperação ao FBI para que especialistas venham ao Brasil nos próximos meses compartilhar a experiência das eleições americanas de 2016 — em que um esquema de propagação de informações falsas, supostamente fabricadas por agentes do serviço secreto da Rússia, atuou contra a candidata democrata Hillary Clinton.

Nos Estados Unidos, a tentativa de controlar o contágio da internet por conteúdo falso foi deixada a cargo da tecnologia. O Google criou um selo para indicar “notícias confiáveis” e mudou regras para evitar que sites propagadores de notícias mentirosas continuem lucrando com o AdSense. Já o Facebook desenvolveu algoritmos para reconhecer conteúdos compartilhados por robôs, aperfeiçoou o sistema para identificar e remover contas falsas e passou a exibir dicas contra fake news na linha do tempo de seus usuários. Nada disso, porém, é muito eficaz.

Na Europa, o presidente francês Emmanuel Macron anunciou que enviará ao Congresso um projeto de lei para conter as notícias falsas. Macron fala em dar aos juízes o poder de derrubar conteúdos falsos ou bloquear o acesso aos sites não confiáveis. Um órgão estatal ficaria encarregado de vigiar as transmissões para detectar tentativas desestabilizadoras controladas ou influenciadas por outros países. Mas quem tiver o poder de retirar conteúdos do ar o fará de forma isenta? Qual o risco de que essa prática esbarre na censura pura e simples? O governo francês, é óbvio, não sabe dizer. Além do risco, há o perigo de que reportagens e posts verdadeiros sejam confundidos com notícias falsas e deletados.


OS MAIORES ALVOS DA MENTIRA

VEJA Analisou 534 postagens com notícias falsas sobre a política brasileira no Facebook, publicadas em doze páginas conhecidas por disseminar fake news*. Abaixo, o ranking com os nomes mais citados, exemplos de frases ou inverdades atribuídas a eles e o viés das manchetes, desfavoráveis ou não aos personagens retratados (em número de citações)

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Os maiores alvos da mentira
*Foram consideradas as 4591 postagens campeãs de compartilhamento entre cerca de 12 000 publicações das páginas “Apoiamos a Operação Lava Jato – Juiz Sergio Moro”, “Bruno Gagliasso Amor e Fé”, “Click Política”, “Diário do Brasil”, “Operação Militar”, “Pensa Brasil”, “Pensa Brasil 2”, “Platão Brasil”, “Por um Brasil Melhor”, “Mexeu com o General Mourão, Mexeu com Toda Nação”, “Notícias Brasil On-line”, “Você Precisa Saber” (Arte/VEJA)

O caso da pesquisa eleitoral do Espírito Santo, por exemplo, envolvia uma notícia clara e propositalmente mentirosa. Mas a classificação de “falso” nem sempre é tão objetiva assim — e aí o problema se torna mais complexo. Embora haja muitos sites dedicados a fabricar mentiras, predomina nas redes sociais o compartilhamento de sites que exageram ou distorcem informações. “São sites engajados politicamente que trabalham para promover sua posição com imprecisão maliciosa, exagero ou especulação apresentada como fato, além, evidentemente, da mentira pura e simples”, diz Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas e coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, ambos da Universidade de São Paulo (USP). Ortellado acrescenta: “Nem sempre é simples determinar o que é erro de apuração e o que é uma mentira criada maliciosamente”.

Também virou moda chamar de fake news o que simplesmente incomoda. Na semana passada, depois que o jornal Folha de S.Paulo publicou reportagem mostrando que o patrimônio imobiliário da família Bolsonaro subira para 15 milhões de reais, o deputado Jair Bolsonaro reagiu dizendo que se tratava de “mais uma mentira da esquerda desesperada”. Pode até existir desespero de esquerda, mas a informação não era mentirosa: documentos oficiais obtidos pelo jornal revelam que Bolsonaro e seus três filhos, apesar da dedicação à política nos últimos vinte anos, conseguiram enriquecer. Afinal, até em Mônaco um patrimônio de 15 milhões de reais — o equivalente a 5 milhões de dólares — é coisa de rico. Só falta explicar por que a notícia verdadeira incomodou tanto o deputado. Se o patrimônio é lícito e o dinheiro também, a família merece aplausos por seu notável tino comercial. Bolsonaro seria o único exemplo conhecido no Brasil de um militar que, depois de trocar a farda pela política, conseguiu, honestamente, chegar aos 62 anos com alguns milhões de dólares no bolso.

Bolsonaro é único em outro aspecto. Talvez seja um raro exemplo de político que pode se beneficiar da avalanche de fake news. No levantamento de VEJA, ele aparece em sétimo lugar na lista dos mais citados em notícias falsas, mas fica em primeiro quando se computa o conteúdo positivo das mentiras. Cerca de 70% das notícias falsas a seu respeito servem para engrandecer sua biografia. Entre as notícias falsas que lhe jogam confete aparecem coisas assim: RedeTV! ultrapassou a Globo em audiência ao entrevistar o deputado. (O programa em questão registrou, na verdade, pouco mais de 1 ponto no Ibope.)

Emmanuel Macron
Busca da verdade – Macron quer que juízes possam derrubar sites enganadores: proposta ainda longe do consenso (Ludovic/Marin/Pool/Reuters)
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“Há um ano, a maioria das pessoas nem sequer saberia o que é notícia falsa”, diz Maurício Moura, diretor da Ideia Big Data e coordenador da pesquisa feita para VEJA. “Só agora vemos a preocupação com a disseminação das fake news acontecer em todos os estratos da sociedade.” Os primeiros estudos sobre o impacto do fenômeno apenas começam a vir à tona. Nesse contexto, as perspectivas sobre o poder de fogo das notícias falsas e seu efeito real na política podem não ser tão sombrias como se supunha. Uma pesquisa das universidades de Dartmouth, Princeton e Exeter mostrou que o consumo de notícias mentirosas nos Estados Unidos, por exemplo, é um fato: durante a eleição presidencial, um em cada quatro americanos leu conteúdo falso. Isso, porém, não significa necessariamente que as inverdades foram relevantes para a tomada de decisão dos eleitores. Apesar do alcance das fake news, eles continuam se informando com muito mais frequência pelos veículos da imprensa profissional, diz o estudo. O que os pesquisadores verificaram, no fim, foi que as fake news circularam com mais força nas extremidades do espectro político, em que a decisão de voto já está tomada e a notícia falsa serve apenas como “viés de confirmação”.

Não existe bala de prata contra as fake news. Apenas o monitoramento de conteúdo e a punição dos propagadores das mentiras não serão suficientes para debelá-las. Para boa parte dos estudiosos do fenômeno, a solução passa, sobretudo, pela educação da população. “Não se pode proibir as pessoas de mentir e de compartilhar coisas falsas. E muitas vezes essas pessoas são nossos pais, tios e irmãos, que fazem isso inadvertidamente”, diz Francisco Rolfsen Belda, professor e pesquisador do programa de pós-graduação de mídia e tecnologia da Unesp. Com otimismo, é possível supor que daqui a um tempo disseminar notícia falsa pela internet será como atirar lixo na rua, uma prova de falta de civilidade e inteligência — e, a depender da qualidade da “notícia”, também de compaixão pelo próximo.


A psicologia por trás do consumo de notícias falsas

Shyam Sundar
Em entrevista a VEJA, Shyam Sundar, diretor do laboratório de pesquisa em mídias sociais da Universidade do Estado da Pensilvânia, diz que as pessoas tendem a acreditar apenas nas declarações que confirmam aquilo que corresponde às suas crenças (//Divulgação)
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Em entrevista a VEJA, Shyam Sundar, diretor do laboratório de pesquisa em mídias sociais da Universidade do Estado da Pensilvânia, diz que as pessoas tendem a acreditar apenas nas declarações que confirmam aquilo que corresponde às suas crenças

Por que as pessoas acreditam em fake news? Por causa de um fenômeno psicológico chamado “viés da confirmação”. Temos uma tendência inata a acreditar em informações que confirmam ou correspondem melhor às nossas crenças e concepções. Da mesma forma, temos uma propensão a descartar tudo o que contradiz nossa visão de mundo. Isso acontece porque buscamos satisfazer determinadas necessidades perceptivas em vez de avaliar objetivamente a veracidade das informações. Os consumidores de notícias não agem como jornalistas e cientistas. Eles não procuram deliberadamente pontos de vista alternativos. Eles são impulsionados pelo desejo de preservar seu ego, o que significa que eles tenderão a acreditar em coisas que se adaptam às suas convicções anteriores.

Por que as pessoas tendem a ser menos céticas diante de notícias on-line? Nossos filtros cognitivos se enfraquecem quando deparamos com notícias que surgem em nossas redes sociais. Isso ocorre porque elas são espaços íntimos que refletem a nossa identidade e nos quais estamos cercados por amigos e seguidores, que consideramos sempre bem-intencionados. Acabamos atraídos por um falso senso de credibilidade. Então, baixamos a guarda e nos deixamos persuadir por histórias compartilhadas por pessoas próximas sem parar para pensar que elas não são os indivíduos mais capacitados e treinados nem têm os recursos necessários para verificar as notícias antes de encaminhá-las. Antes, as fontes de informação vinham da academia e dos veículos de comunicação. Hoje, vêm de todos nós, os leigos.

Por que notícias falsas viralizam mais do que as reais? Elas geralmente vêm com títulos sensacionalistas que mexem com o emocional das pessoas e são projetadas como iscas de cliques. Também proliferam de maneira muito mais rápida do que as agências de checagem de fatos conseguem verificar, como uma espécie de vírus com alto poder de propagação. Por último, elas já nascem no ambiente das redes sociais, diferentemente das reportagens tradicionais, publicadas antes em veículos da mídia profissional.


Com reportagem de André Lopes, Claudio Goldberg Rabin, Guilherme Venaglia, Jennifer Ann Thomas, João Pedroso de Campos, Marina Rappa, Ricardo Helcias, Sofia Fernandes e Victória Serafim

Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2018, edição nº 2565

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