A liturgia de Francisco
O papa altera o Código de Direito Canônico e desestimula o uso do latim nas missas. É um novo gesto de modernização da Igreja e aproximação dos fiéis

Desde 2013, quando se sentou no trono de Pedro, o papa Francisco tem gastado muito latim para fazer ecoar seu indisfarçável desejo de reforma na Igreja. No sábado 9, ao divulgar um motu proprio, documento com força para alterar o Código de Direito Canônico, conjunto de normas jurídicas que regulam a organização da Igreja católica, o Vaticano pôs o latim na berlinda, ao desestimular as missas feitas no velho idioma. Não se pense, contudo, em grandes mudanças na missa de bairro do próximo domingo, que será inevitavelmente muito parecida — e em português — com a do domingo passado. A canetada de Francisco serve mais como uma bússola sobre o que ele pretende: o desestímulo às orações em latim, contrariando desejo militante dos conservadores, alinhando seu papado com posturas mais progressistas.
A intenção de Francisco não foi acabar com a missa em latim, que evidentemente continua valendo. A ideia original é permitir o uso de expressões em vernáculos de cada região, de cada país. Mas, naturalmente, o efeito também será escantear cada vez mais o antigo idioma. O gesto do pontífice faz parte de um olhar mais amplo em torno dos mecanismos das milenares celebrações católicas. O motu proprio deu às conferências episcopais (a CNBB no Brasil é uma delas) a incumbência de adaptar os livros litúrgicos, aqueles usados nas missas, nos casamentos e nos batizados, por exemplo. Até então, as conferências basicamente os traduziam. Na prática, as cerimônias católicas poderão adotar uma linguagem mais próxima à realidade do fiel, como o emprego de expressões locais — sem, naturalmente, ferir o rito sagrado. Os textos editados têm ainda de ser enviados para a Santa Sé, mas não serão mais revisados — e, sim, apenas confirmados. A medida é um modelo de descentralização e celeridade do poder romano. É um aceno de Francisco ao que propôs o Concílio Vaticano II, realizado de 1962 a 1965, que defendia a modernização da Igreja.

Estabelecida no século XVI, durante o Concílio de Trento, a chamada missa tridentina (daí o nome) contempla rituais formais. Além do uso do latim, prevê que o padre permaneça a maior parte do tempo de frente para a cruz do altar — de costas para a plateia, portanto. Os fiéis ajoelham-se inúmeras vezes durante a cerimônia. Foram séculos assim, até que o Concílio Vaticano II introduziu o uso de outros idiomas e determinou que o sacerdote a celebrasse de frente para o povo. Ajoelha-se agora apenas uma vez. No entanto, durante os últimos anos de João Paulo II e na temporada de Bento XVI, houve retomada de tradições conservadoras.
Em 2007, o hoje papa emérito Bento XVI, também por meio de um motu proprio, incentivou a prática das missas em latim. Em julho do ano passado, o cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos do Vaticano, chegou a sugerir publicamente que os padres deveriam celebrar a missa “na mesma direção dos fiéis”. Ou seja, de frente para o altar. Diz o padre Helmo Cesar Faccioli, coordenador da Comissão de Liturgia da Arquidiocese de São Paulo: “O novo documento do papa Francisco reafirma o Concílio Vaticano II”. Com o gesto, o pontífice faz o pêndulo balançar para o lado dos que acreditam ser fundamental refletir as sensibilidades modernas, que demandam um culto menos hermético mas também mais respeito à diversidade, o que inclui recentes pronunciamentos papais em torno da homossexualidade e do segundo casamento. O papa está, assim, pondo a vertente conservadora no acostamento. É o ponto no qual estamos, para onde aponta a bússola.
Em muitos aspectos, o papa Francisco tem sido uma lufada de ar fresco — incluindo, até mesmo, sua aparição no domingo com o rosto ferido, atitude inédita para um pontífice. Em Cartagena, na Colômbia, ele se dirigiu para beijar o rosto de um menino e bateu com a cabeça no vidro do papamóvel. Feriu o supercílio, ficou com o olho esquerdo roxo e manchou de sangue a batina branca. Nada mais adequado para um papa popular — populista, para seus críticos — e que pretende conversar mais de perto com as pessoas. Faz assim porque, para usar uma expressão em latim, ele tem certeza de que a Igreja Católica só estará saudável se for uma res publica, coisa pública.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2017, edição nº 2548