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A pátria de pneus traz prejuízo

O Brasil precisa reinventar seu modelo de desenvolvimento, deixando de priorizar os veículos particulares para organizar cidades mais humanas

Por Marisa Moreira Salles, Tomas Alvim e Washington Fajardo*
Atualizado em 4 jun 2024, 17h30 - Publicado em 31 ago 2018, 07h00
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  • O Trava-língua é um tipo de jogo verbal infantil no qual a fala em velocidade de palavras com sílabas fonéticas semelhantes ou de difícil pronúncia induz ao erro, convertendo-se em um enunciado complicado, exaustivo e até impossível de ser dito em cadência — para fazer graça e entreter os participantes.

    Não é difícil estabelecer um paralelo entre a brincadeira e o Brasil, uma nação continental com elevada taxa de urbanização (85% da população vive em cidades) que está travando o potencial de desenvolvimento de sua sociedade ao criar cidades insolúveis, graças à repetição estéril de um ideário nacional-desenvolvimentista cujo repertório de mobilidade se apoia num trinômio: o automóvel particular como medida de performance econômica; a expansão das manchas urbanas catalisada por subsídios públicos e por omissão de planejamento; e a suspensão de obras e o baixo investimento em transporte de alta capacidade nas regiões metropolitanas.

    O ideário da industrialização nacional das décadas de 50 e 60 concebeu uma capital modernista na tábula rasa natural do Planalto Central. O desenho viário fluido e desobstruído de Brasília é a forma estética e simbólica da alavancagem da indústria automobilística no país, dando tempero latino ao sonho americano. Era esse o Zeitgeist, o espírito do tempo do pós-guerra, que passou a incorporar desejos ufanistas nas décadas seguintes, de modo que nos últimos cinquenta anos — tanto na ditadura quanto em governos ditos progressistas — reafirmamos essa abordagem insustentável da organização dos territórios urbanos.

    A redemocratização de meados da década de 80 trouxe esperança e otimismo movidos pelo sonho da recostura social em centros históricos reabilitados das capitais brasileiras. Esses princípios foram confirmados na Constituição de 1988, detalhados no Estatuto da Cidade, de 2001, e operacionalizados com a criação do Ministério das Cidades, em 2003. As Jornadas de Junho de 2013, por sua vez — iniciadas, vale lembrar, com os protestos pelo aumento das tarifas de transporte público em várias capitais —, deixaram claro, com sua cacofonia política, que o bom urbanismo precisa urgentemente converter-se na nova agenda pública nacional.

    Tornou-se evidente hoje que ou priorizamos a escala humana das cidades, a implementação de políticas habitacionais coerentes com nossos centros urbanos esvaziados, combatendo a segregação espacial e os longos deslocamentos, ou corremos o risco de acirrar de maneira irreversível a “guetificação” da cidadania brasileira, embarcando em processos perigosíssimos de desconstrução da democracia.

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    Não se trata mais, portanto, de apontar os jogos infantis de prefeitos incompetentes, mas de exigir que governantes assumam um compromisso com a população urbana. O próximo presidente da República deverá ser um aliado do prefeito de cada município das 28 maiores regiões metropolitanas, onde vivem cerca de 98 milhões de brasileiros. Nessas áreas, a estabilidade demográfica — com baixas taxas de crescimento e porcentual mais alto de pessoas na fase ativa — é benéfica para o enfrentamento dos problemas urbanos, pois a demanda pela cidade está reduzida. Por outro lado, isso confere uma janela de trinta anos — uma geração — para o equacionamento dos desafios de infraestrutura. A partir daí, teremos uma população envelhecida em territórios ineficientes — o pior cenário. O controle sobre o crescimento das manchas de urbanização é imperioso, pois este produz desequilíbrio fiscal ao gerar, continuamente, a necessidade de melhorias nas novas áreas antropizadas, aquelas que tiveram alteradas as suas características originais.

    Esse controle só será possível se o programa Minha Casa Minha Vida for radicalmente reformulado, convertendo-se em fomento à reciclagem de edifícios ociosos e ao readensamento das áreas centrais, com mais ênfase na constituição de um parque público de moradias para aluguel social e menos na oferta de propriedade privada. Ou seja, é essencial oferecer acesso à cidade e a seus benefícios coletivos, deixando o acesso à casa própria para um momento de maturidade das famílias. Há que ter um olhar dedicado à juventude urbana, que vem dando contínuas provas de resiliência e inovação nas periferias, inventando soluções, negócios e artes e criando bens públicos apesar da omissão dos governos. Isso mostra que a sociedade civil organizada é eixo fundamental para a transformação urbana.

    “Ou implementamos políticas habitacionais que combatam a segregação, ou acirraremos a ‘guetificação’ da cidadania”

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    Portanto, a primeira decisão para uma melhor mobilidade no futuro é começar a reorganizar o uso do solo nas cidades hoje, compreendendo que a reabilitação dos centros constitui também uma opção por uma economia mais sustentável, indutora de crescimento e de cidadania.

    É importante ainda trabalhar com as novas tecnologias e absorver o conceito de compartilhamento, em que as pessoas são protagonistas do deslocamento, começando por andar a pé e chegando a bicicletas, carros compartilhados, e, é óbvio, com a integração tarifária entre modais de alta capacidade.

    O Brasil precisa reinventar urgentemente seu modelo de desenvolvimento urbano, deixando de ser expansionista e de priorizar o carro e as receitas públicas auferidas com multas, e passar a organizar cidades mais humanas, inclusivas e eficazes, nas quais a riqueza da urbanidade possa ser compartilhada.

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    * Marisa Moreira Salles e Tomas Alvim são fundadores do Arq.Futuro, plataforma de discussão sobre cidades; Washington Fajardo é arquiteto e urbanista

    Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598

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