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A pax corrupta

Erros cometidos no acordo de colaboração dos irmãos Batista não devem pôr em xeque os benefícios trazidos pelo instrumento no combate à corrupção

Por Carlos Fernando dos Santos Lima*
Atualizado em 22 set 2017, 06h00 - Publicado em 22 set 2017, 06h00

Como uma investigação despretensiosa e lateral sobre uma Range Rover presenteada por um notório doleiro a um ex-diretor da Petrobras se transforma, num intervalo de três anos e meio, no maior escândalo de corrupção política do mundo? A resposta a essa pergunta é bastante complexa, mas passa, com certeza, pelo uso sistemático de diversas técnicas investigativas, entre as quais a mais importante e, infelizmente, desconhecida é a da colaboração premiada. Por óbvio, ainda é cedo para fazer uma análise fria de todas as repercussões da Operação Lava-Jato. A história dessa operação ainda está para ser contada. Prever o seu fim seria hoje um exercício de futurologia. Pode um dia ser vista como um sucesso, com o desbaratamento de organizações criminosas incrustadas no poder, ou pode ser considerada um fracasso, por não mudar a forma criminosa de financiar nossa política.

Seja qual for o seu resultado, ninguém mais pode ignorar os fatos revelados nem suas implicações na política brasileira. Hoje sabemos que nosso sistema político foi capturado por pessoas que usam a corrupção como forma de manter-se no poder. Qualquer recusa em admitir essa verdade cai por terra quando é confrontada com os fatos. O que resta às nossas elites corruptas, portanto, é reagir.

Essa reação, mostra a história, pode ter efeitos desastrosos, como se verificou na Operação Mãos Limpas, na Itália. Lá, como aqui, as investigações cresceram verti­ginosamente com base em colaborações premiadas, e resultaram na conclusão de que os grandes partidos italianos, a Democracia Cristã e o Socialista, usavam da corrupção pública para financiar sua atuação político-eleitoral.Contra isso, o sistema político italiano reagiu violentamente. Apesar de os fatos revelados representarem uma oportunidade para que se reformasse o sistema de financiamento eleitoral, o que se viu na Itália foi a ascensão ao poder de um populista (o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi comandou o país durante nove anos), a ausência de reformas políticas e a criação de leis que dificultaram o prosseguimento das investigações sobre a corrupção pública. Ou seja, hoje em dia, na Itália, é mais difícil investigar políticos envolvidos em corrupção do que era antes da Mãos Limpas. E isso passou pela restrição do uso de acordos com delatores.

Essa história também é conhecida pelos atuais legisladores brasileiros. Tão conhecida que desejam agora repeti-la. Mesmo diante do grave quadro de deterioração do sistema político, nossos parlamentares, em vez de planejarem uma reforma para corrigir o sistema criminógeno que aí está, buscam mudanças que visam apenas a manter os atuais investigados no comando das máquinas partidárias. Em outras palavras, desejam mudar para continuar tudo como antes. Para isso, desejam também impor limites às investigações futuras, alterando leis para desincentivar novas colaborações. Querem, mais que tudo, instaurar uma falsa paz na política brasileira, calando a Operação Lava-Jato e todas as operações futuras contra a corrupção. Desejam, na prática, a pax corrupta.

Para alcançar esse objetivo, a classe política tenta iludir a população com falsos problemas nas colaborações premiadas até agora celebradas pelo Ministério Público Federal (MPF). Entre centenas de colaborações firmadas desde as primeiras experiências, em 2003, quando houve a Operação Banestado, pinçaram quatro ou cinco casos de mau funcionamento dessa ferramenta. Em especial, buscam desmerecer as delações valendo-se dos problemas enfrentados pelo recente acordo de executivos da J&F com a Procuradoria-Geral da República (PGR).

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É evidente que houve falhas na condução das negociações e, em especial, na comunicação dos motivos pelos quais os irmãos Batista receberam um benefício tão generoso. (O acordo de delação dos ex-executivos da J&F estava condicionado à concessão de imunidade contra denúncias dos crimes cometidos durante o período em que se relacio­naram com o poder público.) Fica claro que era uma cola­boração importante, com enorme potencial para revelar novos esquemas criminosos, mas que certamente deveria ter sido conduzida com as cautelas habituais para colaborações dessa magnitude.

Mas, mesmo com as mentiras e omissões dos executivos da J&F, e até com a eventual atuação dúplice de um ex-procurador da República no episódio, ainda assim o acordo de colaboração prevê solução que atende completamente ao interesse público. Ou seja, esses acordos trazem em si a solução dos problemas que possam acontecer. Isso ocorre porque o acordo de colaboração premiada é bastante rigoroso para o colaborador. Trata-se de um contrato draconiano em que o colaborador se compromete a fornecer todas as informações que possui, sejam depoimentos e/ou documentos, auxiliando a investigação durante os anos vindouros, em troca de benefícios futuros.

Assim, como regra, em seu início, o colaborador recebe, após as condenações terem atingido determinado limite de pena, apenas a suspensão das ações em andamento. Dessa forma, por exemplo, Marcelo Odebrecht aceitou uma condenação de trinta anos, dos quais precisa, entre outras obrigações, cumprir inicialmente dois anos e meio em regime fechado prisional, com a suspensão da prescrição de todas as outras investigações e processos durante dez anos, após o que, se houver rescisão, a prescrição voltará a correr. Assim, garante-se a total colaboração do acusado, pois, em caso de descumprimento, o acordo poderá ser rescindido, com a manutenção de todas as provas produzidas, inclusive contra o próprio colaborador, e a volta de todos os procedimentos suspensos. Além disso, o colaborador terá de cumprir os anos a que foi condenado, descontando-se apenas o tempo que ficou efetivamente preso. Isso é o pior dos mundos para o colaborador faltoso.

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O mesmo acontece com as colaborações dos irmãos Batista com a PGR. Ainda que tenha sido prometida a imunidade, o acordo pode ser rescindido em caso de descumprimento, com a perda do benefício. A força do acordo, portanto, não está somente nos fatos e provas revelados pelo colaborador, mas também nas próprias regras de inadimplemento, as quais preservam as provas e impedem que haja benefícios não revogáveis.

Conclui-se que há, portanto, uma tentativa clara de manipular a opinião pública contra os acordos de colaboração premiada, e o objetivo final desse estratagema é desacreditar a Operação Lava-Jato e os fatos por ela revelados, permitindo que os esquemas corruptos continuem a existir e que o poder se mantenha nas mãos da atual elite política. Para impedir isso, devemos estar atentos a essas manobras e permanecer firmes na defesa da colaboração como técnica de desestruturação das organizações criminosas infiltradas no poder político.

* Procurador da República, integra a força-tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba, no Paraná

Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549

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