Frente a frente na foto em preto e branco, dois símbolos da agitação artística e política dos anos 60: John Lennon e Che Guevara, sentados muito próximos e com guitarras no colo, fazem uma improvisada e improvável jam session. O leitor talvez já tenha visto essa imagem, que muito circulou pelas redes sociais há alguns anos. Não está reproduzida nestas páginas por uma razão simples e sólida: é falsa. A figura de Che Guevara foi sobreposta à imagem do guitarrista Wayne “Tex” Gabriel, que tocou com o ex-beatle em sua carreira-solo, nos anos 70. Não, o roqueiro que se valia da música para pregar seu pacifismo ingênuo não era irmão do guerrilheiro que ambicionava espalhar o comunismo na África e na América Latina pela força do fuzil. Em novembro de 1968 — pouco mais de um ano depois de Che ter sido morto em sua fracassada ofensiva na Bolívia —, os Beatles lançavam seu décimo disco de estúdio, o chamado “álbum branco”. Em Revolution, Lennon e McCartney mostravam-se reticentes diante dos ímpetos subversivos daqueles tempos: “Você sabe, nós todos queremos mudar o mundo. (…) Mas quando você fala em destruição / Não conte comigo”. Sim, 1968 foi o ano mais radical de uma década radical, e a cultura naturalmente espelhou esse viés. Porém, nem todos os radicalismos eram iguais.
No Brasil, havia a radicalidade de Geraldo Vandré, que lançava o hino politizado Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, e a radicalidade da tropicália, movimento que, com Caetano Veloso e Gilberto Gil à frente, era visto com franca hostilidade pela militância esquerdista. Nos Estados Unidos, havia a radicalidade violenta dos Black Panthers, movimento negro que então agitava as ruas, e a radicalidade “paz e amor” do movimento hippie, em refluxo depois do “verão do amor” de 1967. Na Inglaterra, havia a radicalidade dos Beatles e a dos Rolling Stones. No mesmo ano do “álbum branco”, os Stones, ainda com o doidão radical Brian Jones em sua formação, lançavam Beggars Banquet, disco que trazia a endiabrada Sympathy for the Devil e Street Fighting Man, canção inspirada pelas agitações estudantis nas ruas francesas — a letra fala em “sonolenta Londres”, em insinuado contraste com a Paris de Daniel Cohn-Bendit. Foi o momento mais politizado dos Rolling Stones: a banda oriunda da classe média londrina parecia mais em sintonia com as barricadas do que o quarteto de origem operária de Liverpool. Isso só poderia ter ocorrido em 1968, o ano em que o estudante tomou o lugar do proletário na imaginação revolucionária.
Politicamente mais radical do que qualquer roqueiro inglês, o diretor italiano Pier Paolo Pasolini — que naquele ano lançava Teorema, ataque ácido ao convencionalismo burguês — não tinha simpatia pelo movimento estudantil: em um confronto entre os jovens e a polícia na Itália, o cineasta declarou ter simpatizado mais com os policiais, “que são filhos dos pobres”. No campo do pensamento de esquerda, havia radicalismos de diversos matizes e intensidades, nem todos alinhados às agitações do dia. A associação entre opressão política e repressão sexual do alemão Herbert Marcuse caía bem entre a juventude extremista, a ponto de Eros e Civilização ter se tornado best-seller até no Brasil (aparecia em quarto lugar na lista de mais vendidos publicada na primeira edição de VEJA; o primeiro lugar era o hoje igualmente esquecido Aeroporto, de Arthur Hailey, que depois inspiraria um filme de semelhantes sucesso e esquecimento). Mas seu companheiro de geração Theodor Adorno (1903-1969) caiu em desgraça quando, durante a ocupação da Universidade de Frankfurt, estendeu a mão para cumprimentar um policial.
Nem todo radicalismo era político. O experimentalismo visual de 2001 — Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, nada tinha a dizer sobre o Vietnã. E no meio das escaramuças ideológicas ainda havia amplo espaço para a caretice de canções como Andança, uma das mais ouvidas do ano no Brasil (para nem falar de O Inimitável, disco em que Roberto Carlos começa a se afastar da jovem guarda). Para a MPB, porém, 1968 será sempre o ano do tropicalismo. Tropicália ou Panis et Circensis, o disco-manifesto do movimento, com Caetano, Gil, Tom Zé, Gal Costa, Rogério Duprat e os Mutantes, entre outros, traz a data emblemática de “maio de 1968”. O choque da ousadia estética com o extremismo político se daria no III Festival Internacional da Canção, quando Caetano levou ao palco uma música inspirada em um slogan francês, É Proibido Proibir (leia mais a respeito na pág. 84). A canção, que o próprio Caetano julgava fraca, hoje é pouco lembrada, mas o discurso furibundo com que ele peitou a juventude de esquerda que o vaiou em São Paulo entrou para a história. Aquele público não aceitava as guitarras dos Mutantes nem a performance anárquica do cantor, vestido com roupas de plástico. “Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”, disse para a multidão. Suprema provocação, Caetano ainda igualou os jovens esquerdistas aos brucutus do Comando de Caça aos Comunistas que meses antes haviam agredido os atores da peça Roda Viva — de Chico Buarque, com direção de José Celso Martinez Corrêa — em São Paulo e Porto Alegre. Ganhou o apoio de Nelson Rodrigues, o reacionário, que em O Globo elogiou a coragem individual de Caetano ao enfrentar os jovens que “cavalgavam as cadeiras e atiravam patadas como rútilos centauros”. Nelson tomou o episódio como pretexto para atacar a cultura jovem então dominante — nas suas palavras, a “jovem obtusidade”. Caetano Veloso então contava 26 anos.
Ponto comum entre o beatle e o revolucionário comunista, entre o cantor baiano e o público que o vaiava: eram todos jovens. “Toda geração vê o mundo como novo. A geração dos anos 60 via o mundo como novo e jovem”, definiu o historiador Tony Judt, um inglês que esteve em Paris no maio de 1968 e não se impressionou com o que viu. O radicalismo político do jovem que lançava paralelepípedos contra a polícia envelheceu e hoje só é cultuado por nostálgicos da revolução que não houve. A arte jovem de 1968 em grande parte ainda soa vibrante. E radical.
Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2018, edição nº 2563