A divergência é o sal da terra. Noutro dia ouvi de um companheiro e querido amigo: “Você criticou o Fernando Henrique!”. Tomei um susto. Por que não criticar o ex-presidente? Se ele, vindo da academia como veio, não abre mão da polêmica, ousa pensar, formular, propor, quase sempre na direção justa, qual seria o problema em divergir? E, quando comete algum despautério, como insinuar um Luciano Huck no páreo presidencial, por que não criticá-lo? FHC tem toda a legitimidade para sugerir o que quiser. E nós todos temos a prerrogativa de concordar ou não com o que ele diz.
Fernando Henrique polemiza brilhantemente até quando diz conseguir ver novidade em Huck. (O apresentador confirmou na quinta-feira que não será candidato à Presidência da República.) “Novo”? Meu Deus! Velho é o jovem apresentador até quando compra jato executivo com recursos do BNDES. (A revelação, feita antes do anúncio da desistência, foi rebatida pela assessoria de Huck, que informou ter a aeronave sido adquirida por meio de programa de incentivo à indústria nacional e que o apresentador a usa duas vezes por semana para gravar seu programa para a Rede Globo.) Velho em suas “bondades” das tardes de sábado. Velho a ponto de nem mesmo Fernando Henrique lograr êxito em rejuvenescê-lo. Não vejo em qual circunstância caberia transformar o país num grande programa de auditório, como sugeriu o ex-presidente. Seria perigoso confundir a apresentação de quadros como Lata Velha e Lar Doce Lar com uma inclinação política para projetos sociais. São nada mais que entretenimento lucrativo para anunciantes e apresentador, sem nenhuma intenção nem capacidade de melhorar estruturalmente a vida das pessoas.
O PSDB tem no cerne da sua história a defesa intransigente da democracia, o fortalecimento dos partidos e uma aproximação maior com os eleitores. Mas, quando se trata de olhar para dentro, a lição não se aplica. Nosso presidente de honra não é exceção à regra e tem demonstrado isso em diversas ocasiões. Primeiro, em relação às prévias. Em vez de estimulá-las, reconhecendo as candidaturas postas à votação para a Presidência da República, Fernando Henrique cometeu uma sucessão de erros. Ao optar publicamente por seu conterrâneo paulista, o governador Geraldo Alckmin, desencorajou o uso desse instrumento legítimo e democrático. Recentemente, para conturbar ainda mais o processo, chegou a insinuar a defesa de um nome de quem não é candidato e tampouco pertence ao partido. Atitudes assim ajudam a tirar ainda mais a credibilidade das prévias e despejam instabilidade na legenda.
Comuniquei ao meu partido, em outubro, minha intenção de disputar prévias internas, com o objetivo de sair candidato à Presidência da República. No início, houve quem encarasse a ideia das prévias com olhar de pouco-caso e ceticismo. Afinal, como poderia alguém vir do Norte para tentar romper a visão paulistocêntrica, que condenou o partido a amargar quatro derrotas sucessivas em pleitos nacionais? Ao mesmo tempo, o prefeito João Doria, recém-chegado ao comando da principal cidade latino-americana, ensaiava passos de pretendente ao Planalto, o que não parece ter causado estranheza ao partido. A mensagem ficou clara: “Uma candidatura a mim é vedada e a ele não”.
A candidatura presidencial de 2018 estava reservada a Geraldo Alckmin desde o “episódio Aécio”, em que pese a dificuldade que o governador de São Paulo encontra para alçar voo de condor. Determinismo estranho. O que fiz foi chacoalhar o partido e desafiar pelo menos esse destino. Fui chamado de imprudente por uns e “criador de caso” por outros, todos esquecidos de que deve ter sido mesmo “imprudente” o enfrentamento sem trégua que travei contra o ex-presidente Lula quando ele, durante seus governos, era praticamente uma divindade.
Os que preferem o status quo não percebem que a cabeça do eleitor brasileiro mudou. A dubiedade não é cabível, as reformas são inadiáveis e não realizá-las é crime que lesa as novas gerações. É indesculpável, por exemplo, que a bancada de deputados não vote fechada com a reforma da Previdência. Além disso, hoje o PSDB é visto como o segundo partido mais corrupto do Brasil, “perdendo” apenas para o inefável PT — ou seja, o partido se encontra em situação pior do que a de todos os demais nas descobertas sobre o formidável assalto cometido contra os cofres públicos.
O PSDB transformou as prévias internas numa novela. O Brasil não quer mais que as coisas sejam assim. A transparência é necessária, as decisões a portas fechadas já não encontram lugar no processo democrático. Se assim for, o país poderá concluir que a opinião de mão única de hoje se transformará em imposições indesejadas aos seus filhos amanhã. Enquanto o PSDB regride, bailam livres e atrasadas as opiniões de um Ciro Gomes, pressuroso em herdar votos de um Lula possivelmente inelegível. Ou até mesmo os dizeres de um Bolsonaro, despreparado e homofóbico.
É hora de enfrentar as desigualdades regionais, os preconceitos caolhos, as estruturas econômicas esclerosadas. O Brasil está pronto para ser governado sem populismo nem demagogia — por quem odeie a pobreza, e não as pessoas infelizmente pobres. Por quem goste de rua e saiba governar.
Retorno ao PSDB para dizer que não deveríamos ter debatido a agora finada candidatura de um apresentador de TV. Só retomando com seriedade as pautas históricas do partido conseguiremos nos credenciar para recuperar o respeito da opinião pública. Seria mais benéfica a interferência do seu líder maior, Fernando Henrique Cardoso, em assuntos com o potencial de mudar o país, como é o caso da reforma da Previdência. Mais: deveríamos, com o apoio de FHC, expor o nome dos “traidores que votaram contra o futuro dos filhos e netos dos trabalhadores”. Não é assim que as corporações do atraso operam? Pois que façamos o mesmo, só que em nome do futuro.
* Arthur Virgílio Neto é prefeito de Manaus, foi deputado, senador, líder do governo FHC no Congresso e secretário-geral da Presidência
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2018, edição nº 2570