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Andar para a frente

Ao lado da onipresença de novas tecnologias, as metrópoles deverão assistir à redescoberta do modo primordial de se locomover: a pé

Por Marianne Wenzel
Atualizado em 4 jun 2024, 17h30 - Publicado em 31 ago 2018, 07h00
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  • Poucos carros nas ruas, um ar saudavelmente respirável, nenhuma buzina. Era esse o cenário das cidades brasileiras, inclusive as principais metrópoles, durante a crise de abastecimento que parou o país no fim de maio. Diante da ameaça de pane seca, parte da população trabalhou em casa e o restante foi para o escritório de transporte público, de bicicleta ou a pé. Agora, imagine tudo isso ocorrendo sem o pano de fundo da greve dos caminhoneiros, com todas as demais con­se­quên­cias — o que lhe pareceria? Pois esse é, em larga medida, o futuro da mobilidade em conglomerados urbanos de países em desenvolvimento, de acordo com um abrangente estudo internacional realizado pela consultoria Mc Kinsey & Company em parceria com a instituição de pesquisa Bloomberg New Energy Finance e divulgado no fim de 2016.

    Outros dois prognósticos apontados pelo documento, que investiga o horizonte da mobilidade em 2030, tratam de cidades espraiadas de países desenvolvidos, como Los Angeles, e de metrópoles ricas e com alta densidade populacional, caso de Chicago, Hong Kong, Londres e Singapura. Para o primeiro grupo, o que se prevê é a adoção generalizada de veículos elétricos e autônomos, além do pedágio urbano. No segundo, a expectativa é que as fronteiras entre os meios privados, compartilhados e coletivos, venham a se confundir. A mobilidade resultará da combinação entre todos — de forma barata, sob medida e ambientalmente correta, administrada por meio de plataformas que entregarão o serviço da melhor rota ao gerenciar fluxos multimodais de tráfego.

    Nas três previsões, existe um denominador comum: veículos autônomos. “O ano de 2016 constituiu um marco nessa área, com parcerias, fusões e aquisições. Foi o início da revolução digital voltada para o transporte”, atesta Luis Antonio Lindau, diretor do World Resources Institute (WRI) para Cidades Sustentáveis. “Pode demorar trinta anos para chegar aqui, mas vai chegar”, aposta ele. Segundo Lindau, o grande atrativo dessa tecnologia reside na segurança viária — algo relevante para o Brasil, detentor da triste estatística de 47 000 mortes no trânsito em 2017, a terceira maior do planeta, de acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde. Há, entretanto, um risco. Considerando o apego do brasileiro ao transporte individual, sem a adoção de uma legislação específica é possível que venham a existir mais carros autônomos particulares em circulação do que compartilhados, o que geraria o efeito oposto ao desejado. “Automóvel autô­nomo não é serviço de valet”, observa o arquiteto Artur Mausbach, pesquisador do Royal College of Art, de Londres. “Se bem utilizada, essa possibilidade pode mudar a ideia de espaço na cidade. Não se trata mais de um carro, e sim de um ambiente itinerante, com outros usos”, acredita.

    Numa realidade em que nem a simples sincronização de semáforos funciona a contento, falar de “inteligência artificial” e até de “internet das coisas” aplicada à mobilidade parece futurismo. Contudo, já há aqui chips para pagamento de pedágio, cartões de transporte abastecidos por apps, monitoramento de itinerários em tempo real… Certamente a conectividade ampliará seu campo de atuação nessa área. São Francisco, nos Estados Unidos, já provou a eficácia de alguns recursos inovadores. “Lá, os estacionamentos na região central registram os momentos de alta demanda. Os preços sobem, e os usuários ficam sabendo pelo aplicativo. Com essa informação, eles decidem se querem mesmo ir guiando ou se preferem buscar alternativas”, exemplifica a arquiteta Myriam Tschiptschin, coordenadora do núcleo de smart cities no Centro de Tecnologia de Edificações, consultoria em sustentabilidade que funciona na capital paulista.

    O gargalo de tudo isso, curiosamente, é a adesão das pessoas. “Ainda falta entender até que ponto elas querem estar conectadas, porque a internet das coisas vem invariavelmente com oferta de serviços, e, no caso brasileiro, saber como será a regulação disso”, comenta Artur Mausbach. “E as prefeituras precisam lembrar que, antes de ‘consumidores on-line’, somos ‘cidadãos’. Informações como quais linhas passam e em que pontos não devem depender de internet das coisas.”

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    Oxford Circus – Andar para a frente
    CRUZAMENTO - Pedestres e veículos em Londres: fluxos múltiplos (2009 Watchlooksee/Divulgação)

    Alguns entraves no âmbito da mobilidade não dependem, é verdade, da ampliação da conectividade virtual — a paralisia do poder público diante do tamanho do problema, por exemplo. Para o arquiteto Jaime Lerner, responsável pela invenção do BRT em Curitiba, ainda nos anos 70, as respostas a essas questões não virão prontas, nem, menos ainda, de uma só vez. “O mais importante é resolver as pequenas tragédias do dia a dia, em vez de tentar encontrar todas as soluções antecipadamente. Isso aumenta a burocracia, que é medrosa”, orienta ele. “Melhor fazer o possível, agora, pôr em teste e ir ajustando. Os gestores devem ter a coragem de tentar e de trabalhar com continuidade”, afirma.

    Outro limitador é puramente estrutural. “A boa mobilidade está sempre associada à baixa expansão urbana. Portanto, enquanto não se contiver o espraiamento das cidades, enfrentaremos obstáculos cada vez piores para nos deslocar”, alerta Alejandra Devecchi, gerente de planejamento urbano da Ramboll, consultoria dinamarquesa com atuação internacional. Segundo a especialista, São Paulo possui uma densidade de 100 habitantes por hectare; assim, “é preciso no mínimo quadruplicar esse índice para financiar a infraestrutura de transporte, do contrário ela sempre vai requerer subsídios”. Na opinião de Alejandra, o desafio brasileiro de reverter a expansão das cidades talvez não encontre paralelo no mundo. “Trata-se de uma situação muito particular. Gente ocupando mananciais e áreas de risco, vivendo em acampamentos. Isso é a ‘não cidade’ — e não pode se tornar o nosso futuro urbano”, critica. “A chave para resolver essa questão está no mercado, na oferta maciça de moradia nas regiões mais centrais”, conclui ela.

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    Se todos os obstáculos que se impõem atualmente a uma melhor mobilidade urbana forem superados, é seguro afirmar que nas próximas décadas, para além da presença expressiva das novas tecnologias nas ruas, andar a pé de casa para o trabalho voltará a ser regra, e não exceção — como em um dia de revolta das boleias, por exemplo.

    Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598

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