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As marcas da impunidade

Passados cinco anos da tragédia da boate Kiss, não houve punição — ao contrário, o Ministério Público processa a associação de pais das vítimas

Por Silvio Navarro e Marilice Daronco, de Santa Maria. Fotos de Jonne Roriz
Atualizado em 4 jun 2024, 17h30 - Publicado em 19 jan 2018, 06h00

Um pedacinho de papel colado à mesa redonda no salão central da boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, ainda avisa que a reserva havia sido feita em nome de Thais. Talvez fosse Thaís Zimmermann Darif, que morreu naquela madrugada de 27 de janeiro de 2013. Ou talvez Taís da Silva Scaphin de Freitas, ou mesmo uma das duas outras Taíses, a Silveira e a dos Santos, todas elas vítimas da tragédia. Uma mesa contígua foi separada para Rafael — o de Oliveira Dornelles, o Dias Ferreira, o Nunes de Carvalho ou o Quilião de Oliveira? Não se sabe, talvez nunca se saiba. A curta história de vida de todos eles, jovens com idade em torno de 20 anos, menos até, parou ali, nas mesas, na boca do palco, no exato instante em que o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira, entoava o refrão do sucesso Amor de Chocolate: “Um, dois, três, quatro / Pra ficar maneiro eu jogo o clima lá no alto / Alto, em cima!”. A mão direita no microfone, com a esquerda ele acendeu um sputnik, como é chamado o sinalizador apropriado para ambientes festivos abertos, comumente apontado para o alto, como recomendava a canção. Passava das 2h30 da madrugada. O teto da discoteca, rebaixado e revestido com forro acústico de poliuretano para não incomodar a vizinhança, entrou em chamas em segundos. Foram 242 mortos — o incêndio mais mortífero do Brasil, depois da tragédia no Gran Circus Nor­te-Americano em Niterói (RJ), em 1961, que tirou a vida de 503 pessoas.

TRISTEZA EM SANTA MARIA – Os moradores que sobem a Rua dos Andradas trocam de calçada quando chegam perto da boate. Um cartaz clama: “Que não se repita”. Lá dentro, persistem os sinais do que não se quer repetir. O banheiro para onde afluíram os jovens guarda nos azulejos e no piso os vestígios do terror. O cardápio preso ao lado do caixa vendia a esperança interrompida de drinques como o sex on the beach
TRISTEZA EM SANTA MARIA – Os moradores que sobem a Rua dos Andradas trocam de calçada quando chegam perto da boate. Um cartaz clama: “Que não se repita”. Lá dentro, persistem os sinais do que não se quer repetir. O banheiro para onde afluíram os jovens guarda nos azulejos e no piso os vestígios do terror. O cardápio preso ao lado do caixa vendia a esperança interrompida de drinques como o sex on the beach (Jonne Roriz/VEJA)

O que restou da Kiss hoje lembra um beco escuro — e as anotações de reservas para a gurizada são como os ponteiros de um relógio interrompido na marra. A reportagem de VEJA esteve no local na terça-feira 9, durante quatro horas. Os cantos ainda acumulam os restos de fuligem da espuma que, derretida, pingou do teto e virou uma fumaça escura tóxica. Os banheiros onde mais de uma centena de jovens morreu empilhada — eles correram para ali atraídos pelas luzes de emergência colocadas na direção oposta à da saída — estão horrivelmente intactos. Ainda há vestígios do terror no piso e nos espelhos, com marcas de mãos e pés em movimento de desespero. Do lado de fora, a fachada foi coberta por tapumes de madeira para apagar a lembrança das pancadas das marretas dos voluntários que tentaram derrubar o muro para ajudar os bombeiros de plantão. Veem-se ainda as quatro letras que hoje representam um beijo de morte: K-I-S-S. Um painel, debaixo do letreiro, informa: “Justiça 242”, em referência aos que perderam a vida. À direita, o clamor: “Que não se repita”. Os moradores que sobem a Rua dos Andradas mudam de calçada quando chegam perto da boate.

https://www.youtube.com/watch?v=VYRCTpMfRfk

Ficou muito conhecida, logo depois da tragédia, uma foto em que a auxiliar de nutrição Carina Correa empunhava um cartaz com dizeres duros e precisos: “Minha filha morreu por ganância de gente corrupta”. O nome da menina, Thanise, então com 18 anos, hoje está tatuado nas costas da mãe, ao lado de um trecho da música Os Bons Morrem Jovens, da banda Legião Urbana — “Lembro das tardes que passamos juntos / Não é sempre mas eu sei / Que você está bem agora / Só que neste ano o verão acabou cedo demais”. O desabafo de Carina, bem como o clamor por escrito — “que não se repita” —, caiu num abismo de silêncio aterrador. Nada melhorou. Pior. Cinco anos depois, a impunidade é a grande marca da tragédia de Santa Maria. O poder público esqueceu os mortos da Kiss.

À exceção de três bombeiros, julgados e condenados a penas brandas por um tribunal militar, ninguém foi punido pela tragédia. Da lista de 28 responsabilizados — dezesseis deles indiciados — pela Polícia Civil, apenas quatro ainda podem ser condenados. Os demais ou não foram denunciados pelo Ministério Publico, ou a denúncia acabou engavetada, ou responderão por seus atos apenas nas esferas cível ou administrativa.

Os quatro réus são: os músicos Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, que disparou o artefato pirotécnico no palco da boate, e os antigos donos da casa, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, e Mauro Londero Hoffmann, o Maurinho. Todos eles chegaram a ser presos, mas foram soltos depois de quatro meses, e tiveram destinos distintos. Kiko, logo após o incêndio, tentou se enforcar com uma mangueira de chuveiro quando estava internado sob custódia em um hospital no município vizinho de Cruz Alta. Muito conhecido nas ruas de Santa Maria pelo estilo baladeiro e por frequentar as colunas sociais dos jornais locais, ele hoje se recusa a dar entrevistas. Sua página com 25 000 seguidores no Facebook foi extinta ante a avalanche de ataques que recebeu depois do incêndio. Maurinho, seu sócio na Kiss, prossegue na carreira de empresário, tem negócios no estado, mas seus advogados não dizem nem mesmo se mora em Santa Maria. Querem mantê-lo o mais longe possível dos holofotes.

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O vocalista Marcelo Santos desistiu de ser músico e desmanchou a Gurizada Fandangueira. Hoje, continua com sua vida modesta e vive fazendo “bicos” de azulejista. Seu colega de banda Luciano Leão também faz trabalhos alternativos para sobreviver. Usa sua moto como táxi, para transportar pessoas e entregar encomendas, e também opera o som em festas. “O fato de somente quatro réus responderem criminalmente se deve à política judiciária de nosso país”, diz Omar Obregon, que representa Marcelo Santos. “É reflexo do que acontece nos altos escalões de nossa república. Acredito que deveria haver outros réus.”

Os quatro réus ainda podem ser condenados, mas não devem ser submetidos a tribunal do júri. Em dezembro do ano passado, o Tribunal de Justiça do Estado decidiu que eles não deveriam ser enquadrados em crime doloso, aquele em que há a intenção de matar. São agora réus de crime culposo, em que não há a intenção de matar. A decisão exime os réus de ir a júri popular, algo que a defesa tenta incansavelmente evitar, dado o grito dos habitantes de Santa Maria por justiça. O Ministério Público está recorrendo contra a decisão dos desembargadores do Tribunal de Justiça, mas a defesa dos quatro réus comemora. “Até hoje se usam fogos de artifício em shows. Ninguém nunca poderia imaginar que a apresentação de uma banda pudesse causar algo dessa dimensão. Não é, portanto, homicídio doloso”, diz Gilberto Carlos Weber, que representa Luciano Leão, ex-integrante da banda.

O processo nos tribunais poderia ser apenas mais um lamentável exemplo da morosidade da Justiça brasileira e das manobras protelatórias de advogados dos réus. Porém, o episódio de Santa Maria também produziu uma inimaginável situação na esfera judicial, na qual um grupo de pais das vítimas acabou sendo processado pelo Ministério Público por calúnia e difamação em diferentes frentes. A queda de braço entre os pais e os promotores começou ainda em março de 2013, quando a Polícia Civil indiciou dezesseis pessoas, mas os promotores, no que diz respeito à acusação de homicídio, denunciaram apenas quatro. Revoltado, o grupo de pais que mantém uma associação de apoio às famílias pregou cartazes com charges contra o promotor Ricardo Lozza e o então prefeito, Cezar Schirmer, pelas ruas da cidade. Diante disso, Lozza quis “cessar ofensas indevidas” e entrou com ação contra os dirigentes da associação de pais, Sérgio Silva e Flávio José da Silva. “Fomos processados por ter criticado o Ministério Público por falta de moralidade”, diz Sérgio Silva, pai de Augusto, de 20 anos, morto nas chamas. “O que matou nossos filhos foi a corrupção. O próprio promotor disse que houve ‘mutreta’ na prefeitura”, afirma o outro processado, Flávio José da Silva, pai de Andrielli, que morreu aos 22.

A expressão “mutreta”, assim, nua e crua, de fato foi usada por um dos promotores do caso, Joel Dutra. Ele se referia à inépcia da fiscalização. Em junho do ano passado, o programa Fantástico, da Rede Globo, exibiu gravações nas quais Dutra afirmou “ter certeza” de que os donos da discoteca “fizeram mutreta” na prefeitura para manter a Kiss funcionando com alvarás vencidos e falou em “supostas falhas administrativas” do Corpo de Bombeiros. Os áudios foram gravados pelo próprio Flávio, durante reuniões na sede do Ministério Público de Santa Maria, cinco meses depois do desastre. Dutra disse mais: “Assim, ó: existe uma leizinha municipal que prevê que não pode ter material inflamável dentro da boate, e os bombeiros não deram bola para isso, simplesmente ignoraram”.

Como costuma ocorrer em eventos de contabilidade macabra, o incêndio na Kiss foi uma sucessão de erros. As licenças de funcionamento estavam vencidas, os bombeiros não cumpriram as vistorias obrigatórias, ao menos um dos sete extintores da boate se encontrava vazio. A banda usou fogos de artifício proibidos para ambientes fechados, e a lotação da boate na noite da tragédia estava acima da capacidade — 300 pessoas a mais. E, no entanto, apesar da sucessão de irregularidades, não houve punição.

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É na negligência dos agentes públicos que os ex-donos da casa noturna fiam a defesa. “A escolha dos acusados foi usada para dar uma resposta imediata à sociedade, mas acabou revelando uma tentativa de não incriminar aqueles que fiscalizavam e autorizaram o funcionamento da boate. A Kiss só estava funcionando porque os órgãos públicos autorizaram”, afirma o advogado Mario Cipriani, que defende Mauro Hoffmann, o Maurinho, um dos ex-donos da discoteca. “Com a última decisão do Tribunal de Justiça, qualquer demora no processo é de responsabilidade do Ministério Público, que insiste em recorrer (da acusação de crime doloso)”, completa. Procurado por VEJA, o Ministério Público diz que a gravação da “mutreta” se deu em ambiente informal e foi descontextualizada, e alega que, passados cinco anos, é “prematuro e equivocado” falar em impunidade.

Casos como o da Kiss já ocorreram em outras grandes cidades do mundo. Um dos mais tristemente conhecidos foi o incêndio na boate República Cromañón, em 2004, em Buenos Aires. Na ocasião, quase véspera da virada do ano, um sinalizador muito semelhante àquele disparado pelos membros da Gurizada Fandangueira em Santa Maria foi usado por uma banda portenha e provocou a morte de 194 pessoas, a maioria asfixiada por fumaça tóxica. Foi tudo muito parecido. Na Argentina, a Justiça também andou lentamente e, mesmo com condenações, os catorze acusados só foram presos oito anos depois em razão de recursos que protelaram o processo. Mas, ao contrário do caso brasileiro, houve desdobramento político. O então prefeito de Buenos Aires, Aníbal Ibarra, nome cotado para voos eleitorais mais altos, sofreu um processo de impeachment por desleixo na fiscalização. Caiu do posto e até hoje não recuperou o status de potencial presidenciável. Nos Estados Unidos, um incêndio na boate The Station, em Rhode Island, deixou 100 mortos em 2003. Também foi causado por fogos de artifício em ambientes cobertos. Três pessoas foram condenadas e as indenizações bateram em 175 milhões de dólares. O episódio, a quarta maior tragédia da história americana segundo a NFPA (sigla em inglês para Associação Nacional de Proteção contra Incêndios), forçou ao menos uma medida obrigatória de segurança: a exigência de sprinklers, aqueles borrifadores de água instalados no teto de prédios com grandes aglomerações, algo que a Kiss não tinha.

No Brasil, as “falhas administrativas” ou “mutretas”, como disse um dos promotores de Santa Maria, deixaram centenas de vidas estraçalhadas, seja pelas marcas no corpo — amputações, queimaduras de altíssimo grau e complicações respiratórias decorrentes da inalação de gás cianeto, fuligem e monóxido de carbono —, seja pelo terror psicológico. E parece que não se extraiu nem uma única lição da tragédia. O apelo — “que não se repita” — do cartaz exibido na fachada da Kiss soa retórico, porque muito pouco foi feito para que a história não se repita. Em março do ano passado, a chamada Lei Kiss (13.425/2017) recebeu doze vetos até ser sancionada pelo presidente Michel Temer. Entre os vetos, constam pontos controversos. Um deles: prefeitos deixam de responder por improbidade administrativa caso bombeiros não façam vistorias. Outro: voltou a ficar liberada a utilização de comandas, que controlam o consumo em casas noturnas, cujo pagamento à saída gera filas enormes e, em caso de incêndio ou outra ocorrência, são um convite à tragédia. No episódio de Santa Maria, as barras de ferro usadas para organizar a fila do pagamento de comandas atrapalharam a saída de muitos, e os seguranças da boate, sem saber do incêndio, ainda impediram à força que outros tantos deixassem o prédio, empurrando-os para a morte.

A legislação sancionada pela Presidência ainda desobriga bombeiros e fiscais das prefeituras de vistoriar anualmente esse tipo de estabelecimento. “Sem rigor na fiscalização, o risco continua. Não tenho dúvida de que uma nova tragédia pode acontecer no país”, avalia Antonio Fernando Berto, chefe do Laboratório de Segurança ao Fogo e a Explosões do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).

Em abril, o que resta do prédio em ruína e desapropriado pela Justiça — a chave do local ficou em posse de Flávio Silva, um dos dirigentes da associação de pais — será demolido para dar lugar a um memorial dedicado às vítimas. É o mínimo a oferecer aos 270 000 habitantes de Santa Maria — 10% deles estudantes da universidade federal da cidade. À espera da demolição, as indicações das mesas reservadas em nome de Thais, de Rafael e de tantos outros ressoam dolorosamente. Serão guardadas como peças de um museu de horrores. São marcas de uma tragédia indelével, que só poderão ser algo suavizadas quando — e se — a justiça for feita.

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Delvani Brondani Rosso, 25 anos
Delvani Brondani Rosso, 25 anos (Jonne Roriz/VEJA)

“Meu propósito de vida agora é salvar quem eu puder”

Depois daquela madrugada, Delvani Brondani Rosso teve de se reinventar. Fazia um curso técnico em agropecuária e planejava ajudar a família, de lavradores. Hoje, aos 25 anos, plantou novas sementes em sua vida. “Quero cursar medicina, quero me especializar na emergência e salvar o máximo de pessoas que eu puder”, afirma, deixando escapar um tímido sorriso entre a emoção e os dedos enrugados em virtude das queimaduras. Rosso teve 45% de sua pele consumida pelas chamas, e não pode andar debaixo do sol. Passou dois meses no hospital, sendo quarenta dias em coma, e chegou a ser desenganado. “Não conseguia falar, não podia gritar nem me mexer, a única coisa que sentia eram as lágrimas caindo”, recorda-se. Dos instantes imediatamente posteriores à tragédia — estava na boate Kiss na companhia de cinco amigos e do irmão, Jovani, três anos mais velho — pouco se lembra. “Estava deitado na calçada e me lembro de duas meninas me olharem com cara de horror”, diz. Só depois ele soube que fora salvo, carregado para fora da casa de festas, pelo próprio irmão.


Maria Aparecida Neves, 59 anos
Maria Aparecida Neves, 59 anos (Jonne Roriz/VEJA)
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“Não consigo me conformar, acho que vou morrer com essa dor”

A dona de casa Maria Aparecida Neves, de 59 anos, até hoje não conseguiu desmontar o quarto do filho que já morreu. Augusto Cezar Neves tinha 19 anos. O corpo chegou ao Centro Desportivo Municipal de Santa Maria no quarto caminhão frigorífico designado para resgatar as vítimas do incêndio. Maria Aparecida e o marido, o pintor de paredes Cezar Augusto Madruga Neves, ainda aguardavam o telefonema de Augusto, que, no fim das baladas, costumava pedir aos pais que chamassem um taxista. A mãe ficou sete dias sem conseguir pôr os pés dentro de casa. “O vazio continua muito grande. Levanto pela manhã e ligo o rádio porque o silêncio me faz mal”, diz. Na casa da família, o tempo parece congelado. No quarto de Augusto, a cama continua estendida, o lençol carinhosamente bem passado à espera de quem nunca mais chegará. As gavetas estão intactas e a guitarra está posicionada ao lado da cabeceira, ali onde sempre esteve. “Não consigo me conformar, acho que vou morrer com essa dor”, desabafa Aparecida. Agora, em janeiro de 2018, Augusto seria um dos formandos da Faculdade de Ciência da Computação da Universidade Federal de Santa Maria.


Yasmin Muller, namorada de Lucas Dias de Oliveira, 20 anos
Yasmin Muller, namorada de Lucas Dias de Oliveira, 20 anos (Jonne Roriz/VEJA)

“Me procurando achei teus olhos, pelos caminhos de flor e encanto”

A aba de couro do chapéu campeiro de Lucas Dias de Oliveira, de 20 anos, guarda até hoje um significado para Yasmin Müller, prestes a completar 24 neste janeiro. Apaixonados, os jovens comemoravam o aniversário dela na noite que não teve fim. Yasmin usava o chapéu quando chorava sobre o caixão do namorado, que sonhava ser ginete e trabalhar com cavalos, e a quem conhecera numa loja de roupas e objetos típicos gaúchos, onde trabalharam juntos. Quando o ar se tornou irrespirável durante o incêndio na Kiss, ela deixou o local atordoada. Lucas havia ido ao banheiro, de onde nunca mais voltou. “Uso medicamentos para a respiração e também os psiquiátricos”, afirma Yasmin. Hoje, ela estuda zootecnia na Universidade Federal de Santa Maria, curso que pretende emendar com o de medicina veterinária, uma das paixões do ex-companheiro. No peito, ela carrega um pingente que simboliza um cavalo. Um dos recados grafados num bilhete de Lucas, que remete a uma canção típica da região, está tatuado no corpo de Yasmin: “Me procurando achei teus olhos, pelos caminhos de flor e encanto”.


Carina Correa, 39 anos, (à dir.) durante manifestação na frente do gabinete do prefeito
Carina Correa, 39 anos, (à dir.) durante manifestação na frente do gabinete do prefeito (Jonne Roriz/VEJA/Estadão Conteúdo)
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“Uma mãe não passa nove meses com uma filha na barriga para perdê-la numa ratoeira”

Carina Correa, de 39 anos, pensou em pôr fim à vida duas vezes. Diz só ter evitado esse desfecho por causa da filha mais nova, Camilly, que a ajuda a tratar da depressão. Sua filha mais velha, Thanise, tinha 18 anos quando morreu, dentro da boate Kiss. Os pesadelos recorrentes são um sinal de alerta, de desespero e revolta. Carina ganhou notoriedade em Santa Maria depois de desferir um tapa no rosto do advogado Jader Marques, defensor de Elissandro Spohr, um dos sócios da casa noturna. “A justiça vai ser feita de algum jeito. Se não for pela Justiça, será feita pelas mãos de pais ou mães”, desabafa, com a boca trêmula. “Uma mãe não passa nove meses com uma filha na barriga para perdê-la dessa forma, numa ratoeira, depois de criá-la por dezoito anos.”


Ezequiel Corte Real, hoje com 28 anos, (à dir.) carrega uma vítima durante a tragédia na Boate Kiss
Ezequiel Corte Real, hoje com 28 anos, (à dir.) carrega uma vítima durante a tragédia na Boate Kiss (Jonne Roriz/VEJA)

“A cidade nunca mais foi a mesma — nem nunca mais será”

As mãos do fisiculturista Ezequiel Lovato Corte Real, de 28 anos, ainda trepidam, com fragilidade incompatível com a montanha de músculos, quando ele volta à madrugada na qual ajudou a resgatar dezenas de vítimas da Kiss. Sua foto com um garoto nos braços na Rua dos Andradas rodou o mundo. Foi um dos símbolos de força ante a inapelável dor da tragédia. “Quando você depara com cinco pessoas caídas e ainda pode resgatar uma, quem vai ser? Aquele momento de escolher entre uma e outra foi terrível. Às vezes, ouvia uma pessoa me agradecendo e pensava: ‘Será que o seu filho não é alguém a quem não consegui estender a mão?’”, diz o instrutor de uma academia do município. Naquela noite, Ezequiel afirma que voltou para casa e apagou na cama. “Dormi com um número de mortos, mas acordei com outro. E as pessoas que ficaram, ficaram com que vida?”, ele se indaga, sem resposta possível. Em 2016, quando a tocha olímpica passou pelo estado, a caminho do Rio de Janeiro, ele foi um dos convidados a carregá-la. “Mas Santa Maria, de lá para cá, nunca mais foi a mesma – nem nunca mais será.”

 


Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2018, edição nº 2566

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