Baixou a ‘pelota’
Nas eleições legislativas, Cristina Kirchner conseguiu garantir uma vaga no Senado, mas seu enfraquecimento político sinaliza o fim do kirchnerismo
Entre as heranças que os imigrantes ingleses deixaram para Buenos Aires, está o costume de ter quase um estádio de futebol por bairro: são 36 na capital argentina. Durante a campanha para as eleições legislativas, realizadas no domingo 22, vários eventos ocorreram em campos ou ginásios de clubes. E foi na sede do time de futebol Arsenal, em Sarandí, que a ex-presidente Cristina Kirchner, candidata ao Senado pela província de Buenos Aires, acompanhou a apuração dos votos. Enquanto esperavam que Cristina subisse ao palco, seus militantes se entretinham com um filme em que ela conferia sua roupa no espelho, entrava em uma aula de zumba e conversava amenidades com assessores. No partido que ela criou, o Unidade Cidadã, Cristina não passa a bola para ninguém. Ela joga sozinha.
Seu discurso só começou às 23h20, quando já estava certo que ela tinha ficado em segundo lugar na disputa regional. Presidente por dois mandatos, que totalizaram oito anos na Casa Rosada, ela considerou bom o desfecho das urnas: “Aqui não acaba nada. Aqui tudo começa”.
Pintar uma derrota como sendo vitória não é um comportamento incomum para políticos, ainda mais quando se trata de alguém que sempre foi avesso à realidade das estatísticas ou das notícias. Mas o fato é que Cristina, que nunca tinha perdido uma eleição como candidata, ficou 4 pontos porcentuais atrás do analista de sistemas e administrador Esteban Bullrich, um desconhecido e opaco funcionário do governo de Mauricio Macri. “O kirchnerismo entrou em decadência e, a partir de agora, será um ramo minoritário no peronismo”, explica o cientista político Rosendo Fraga, de Buenos Aires. “Nas eleições presidenciais de 2019, seus membros poderão derivar para o peronismo ou para as forças de esquerda. Seria o fim definitivo do movimento”, diz Fraga.
Apesar do segundo lugar, Cristina garantiu uma vaga no Senado, que assumirá em dezembro. Mas até isso pode não ser duradouro. Na Justiça argentina, existem 280 denúncias criminais e administrativas contra ela. Uma das possibilidades é que um juiz peça a anulação do foro privilegiado para que, assim, ela possa ser sentenciada e, talvez, presa. Para tanto, bastaria que dois terços do Congresso aprovassem a retirada do privilégio — o que não deve ser um entrave na próxima legislatura. Na Câmara dos Deputados, o Unidade Cidadã perderá dez cadeiras. No Senado, ficará com oito a menos.
Entre os crimes pelos quais Cristina pode ser condenada estão o de enriquecimento ilícito e o de corrupção passiva, se for comprovado que ela recebeu dinheiro do empresário Lázaro Báez por diárias-fantasma em um hotel da família Kirchner na Patagônia. Cristina também é acusada de traição à pátria por ter costurado um acordo com o Irã que impediria a condenação dos responsáveis pelo atentado terrorista à Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em 1994, que deixou 85 mortos. Por fim, também pode responder por encobrimento de um magnicídio, o assassinato do procurador Alberto Nisman, que investigava o caso Amia, em 2015.
Vários nomes graúdos próximos de Cristina já foram para trás das grades. Entre eles estão Lázaro Báez, o empreiteiro que pagou as diárias de hotel inexistentes, José López, ex-secretário de Obras Públicas, que guardava sacos cheios de dinheiro em um convento, e Ricardo Jaime, ex-secretário de Transporte que comprou trens velhos e inúteis da Europa. Na quarta-feira 25, o deputado Julio De Vido, ex-ministro de Planejamento, perdeu o foro privilegiado em uma votação no Congresso. Ele é acusado de praticar sobrepreço na venda de gás liquefeito e de desviar o equivalente a 15 milhões de dólares de fundos da modernização de uma mina de carvão em Santa Cruz, também na Patagônia. “A Justiça argentina está muito desacreditada e espera melhorar sua imagem, inspirada na Operação Lava-Jato do Brasil”, diz o advogado Guillermo Fanego, de Buenos Aires, especialista em direito penal.
À parte as questões jurídicas que podem lhe dar uma rasteira em pleno mandato, Cristina tem visto sua base de admiradores minguar. No clube Arsenal, um dos poucos kirchneristas de idade mais avançada presentes era o estivador aposentado Luis Lima, de 70 anos. “Os verdadeiros peronistas deveriam seguir a linha de Cristina. Ela é a única que pode parar o presidente Mauricio Macri”, diz Lima. A maioria dos presentes, contudo, era de jovens de classe média. Os mais empenhados integravam o grupo La Cámpora, que desde 2010 foi agraciado com 7 000 cargos no setor público. Seus membros eram liderados por Máximo Kirchner, o filho da presidente. Ainda que seus cabeças tenham sido demitidos, muitos continuam em seus postos porque ganharam estabilidade no emprego. “Como não oferece mais a possibilidade de ingressar na máquina pública, a militância do La Cámpora acabou perdendo o sentido”, diz o historiador Luis Alberto Romero, da Universidade de Buenos Aires.
Entre os que acompanhavam a contagem de votos no ginásio do Arsenal, era impossível encontrar alguém que aceitasse falar em nome do La Cámpora. Líderes conhecidos do grupo se recusam a conceder entrevistas por telefone assim que sabem que o destino do movimento é o tema das perguntas. “Durante o governo de Cristina, eles foram uma seita, um culto quase religioso devotado a Cristina. Como ela perdeu muito espaço, eles só continuam existindo nos poucos lugares em que o Unidade Cidadã segue governando”, diz o cientista político Patricio Giusto, da Universidade Católica Argentina (UCA).
Para a maior parte da população, as bases ideológicas do kirchnerismo, como a aversão aos fundos abutres (que compraram títulos da dívida argentina e não aceitaram renegociá-los) ou a abordagem nada universal dos direitos civis (por um lado, incentivou-se a condenação dos ditadores militares; por outro, promoveu-se a censura), importam bem menos do que a perspectiva de melhora econômica. Já houve uma leve queda no desemprego, que foi de 9,3% para 8,7% em doze meses.
No restaurante popular Los Piletones, no bairro de Villa Soldati, periferia de Buenos Aires, a mudança é visível. Entre os que frequentam o local para almoçar de graça, há vários trabalhadores de construção civil com seus uniformes e capacetes amarelos. “Eles vêm para cá para economizar na comida e com isso ter mais dinheiro no fim do mês. Esse tipo de visita não existia antes e nos dá muita alegria”, diz Margarita Barrientos, que comanda o restaurante. Sinal de que os empregos voltaram. Mantido por doações, o restaurante inaugurou uma filial em Santiago del Estero, a cidade da Argentina com o maior número de pobres.
O resultado das eleições legislativas brindou Macri com a ausência de nomes fortes na oposição. Cristina, enfraquecida, é o mais conhecido deles. No Congresso, macristas e peronistas já têm feito parceria em assuntos caros ao presidente. Macri também contará com os deputados e senadores que devem favores aos governadores, pois estão negociando verbas e ajustes com o governo central.
Com os sindicalistas, a questão é mais complexa. A Confederação Geral do Trabalho (CGT), criada em 1930, não é mais tão hegemônica e compete com outras organizações. Em paralelo, desde a crise de 2001, surgiram grupos politizados que têm capacidade ainda maior de organizar piquetes, bloquear estradas e pressionar o governo por mais verbas. Entre os mais ativos estão a organização Barrios de Pié (“Favelas em Pé”), o Movimento Evita e a Confederação dos Trabalhadores da Economia Popular (Ctep), cujo líder, Juan Grabois, é amigo do papa Francisco. Esses grupos são considerados como de “peronismo de esquerda”. No ano passado, conseguiram que o Congresso aprovasse uma lei de emergência social, que aumentou o valor dos benefícios sociais e autorizou uma verba equivalente a quase 5 bilhões de reais para as organizações sociais. Macri, que não queria problemas antes das eleições, sancionou o presente. Como a principal meta do governo é reduzir o déficit fiscal, o presidente sabe que terá de fechar os cofres do Estado. Se não fizer isso, arriscará sua governabilidade. O amadurecimento político da Argentina será posto à prova daqui para a frente.
Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2017, edição nº 2554