Brasil, cheguei
A entrada do gigante americano Amazon na venda de produtos eletrônicos pela internet no Brasil promete acirrar a competição — e beneficiar o consumidor
As compras pela internet fazem parte, cada dia mais, da rotina do consumidor nacional. No ano passado, 48 milhões de brasileiros realizaram ao menos uma compra on-line — houve alta de 22% em relação a 2015. Neste ano, essas vendas devem somar 49 bilhões de reais, mais que o dobro do registrado cinco anos atrás. Os números poderiam ser ainda maiores, movimentando a atividade econômica e gerando empregos, se o atendimento oferecido aos clientes fosse aperfeiçoado. Não faz muito tempo, as empresas de varejo on-line lideravam os rankings de reclamação de consumidores por motivos como atraso na entrega de produtos e discrepâncias nas cobranças. Trata-se de uma boa notícia, portanto, a entrada da americana Amazon no comércio de produtos eletrônicos pela internet.
As vendas on-line da Amazon começaram na madrugada da quarta-feira 18, inicialmente apenas com celulares, computadores e acessórios, jogos, câmeras e televisores. Mas deve vir mais por aí. Um dos gigantes da nova economia, a Amazon construiu em pouco mais de duas décadas de existência a reputação de empresa ousada e que joga pesado para ganhar o mercado. É obsessiva na qualidade do serviço que presta, oferece um catálogo extenso de mercadorias, muitas das quais com descontos agressivos, mas é frequentemente acusada de se valer de práticas comerciais desleais.
O consumidor, até onde se sabe, está satisfeito. Nos Estados Unidos, a companhia obteve por três anos, de 2014 a 2016, a melhor avaliação nas pesquisas de reputação com clientes de todos os setores. Neste ano, ficou em segundo lugar, atrás da fabricante suíça de relógios Rolex. A empresa aparece também entre as campeãs quando o assunto é lobby: despendeu no ano passado 11 milhões de dólares para se fazer ouvir em Washington a respeito de assuntos tão variados quanto regras para uso de drones e cobrança de impostos. Além disso, seu fundador, Jeff Bezos, desembolsou 250 milhões de dólares para comprar, em 2013, o jornal The Washington Post, um dos mais influentes do país.
A Amazon está no Brasil há cinco anos. Em seu nascedouro, ela optou por atuar apenas no mercado de livros em versão eletrônica, por meio da venda de e-books e de seu leitor digital, o Kindle. Dois anos depois, passou a vender livros físicos. A companhia não divulga seus resultados no país, mas analistas dizem que já se tornou uma das líderes do segmento, ao lado de grandes redes como a Saraiva e a Livraria Cultura. A estratégia de oferecer descontos agressivos desagrada às principais editoras, que defendem, de forma institucional, uma política de preço fixo para os livros. Agora a Amazon ingressa em três dos quatro segmentos que mais geram receita com vendas: celulares, eletrônicos e informática. Para o consumidor, o efeito tende a ser benéfico: o aumento da concorrência vai exigir esforços maiores dos varejistas para aperfeiçoar o serviço (como reduzir os prazos de entrega ou conter os atrasos), ampliar a oferta de produtos e cortar os preços. “Há muito espaço para melhorar a qualidade do atendimento no Brasil”, diz Alex Szapiro, diretor da Amazon no país. De fato, será um competidor de peso. O risco, para o mercado, é vir a ocorrer uma guerra sangrenta de preços que culmine com a morte de vários competidores locais.
A reação dos investidores revela a chacoalhada no mercado. As ações da B2W, a líder em vendas pela internet no Brasil com as marcas Americanas.com, Submarino e Shoptime, chegaram a recuar 20% nos dias que se sucederam à notícia da nova jogada da Amazon no país. O Magazine Luiza, a segunda maior empresa nesse setor, também sofreu uma desvalorização similar. Mas, ao longo da semana, seus papéis tiveram uma recuperação. Os preços cobrados pela Amazon, ao menos inicialmente, não se mostraram tão diferentes daqueles praticados no mercado nacional. Outra razão para a alta das empresas brasileiras, segundo analistas, foi a divulgação dos detalhes da operação da Amazon no país. Ela decidiu vender apenas produtos de terceiros, sem se envolver, ao menos em um primeiro momento, com a complexa operação de distribuição e entrega das mercadorias, uma de suas áreas de excelência nos Estados Unidos. Mas o gigante americano promete fazer uma triagem rigorosa de quem vende em seu site e oferecer o seu padrão de pronto atendimento a quem quiser reclamar de produtos adquiridos. A conferir.
“Não se pode subestimar o peso da Amazon, mas, dada a realidade brasileira, vai levar tempo para que ela consiga alcançar a excelência que a consagrou na operação, na logística e na distribuição em outros mercados”, diz Marcos Gouvêa de Souza, diretor-geral do Grupo GS& Gouvêa de Souza, consultoria especializada em varejo. O modelo de negócios escolhido pela Amazon é conhecido como marketplace, em que a empresa funciona como um shopping virtual, comercializando mercadorias de outros varejistas ou até diretamente de fabricantes em troca de uma comissão de 10%. É vantajoso para ela em relação ao modelo de venda direta ao consumidor, porque exige menos dispêndio de caixa para a formação e a manutenção de estoques. Os descontos são bancados em parte pelos vendedores. Oferece ainda uma margem de ganho maior e permite que a companhia amplie a variedade de itens ofertados. Um exemplo se deu no segmento de livros físicos. Dos 350 000 títulos em português hoje disponíveis, 100 000 foram adicionados com a decisão de vender exemplares de terceiros. É um modelo que vem ganhando relevância na estratégia das maiores varejistas on-line. A B2W adotou-o em 2014. Naquele ano, o marketplace respondeu por apenas 1% das vendas do grupo. Subiu para 30% no primeiro semestre deste ano.
A B2W tem como principais acionistas Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, os mais bem-sucedidos empreendedores do país. Em reunião recente com o alto escalão da companhia, Sicupira enfatizou que a ordem é redobrar os esforços para fazer o marketplace crescer. Outras varejistas on-line seguem essa tendência. O potencial de crescimento do mercado brasileiro é enorme: as vendas pela internet representam 3,5% do faturamento do comércio, contra 15% em economias desenvolvidas. Ainda há muito a ser conquistado, portanto.
No mercado de livros, o papel segue firme
Se as vendas no varejo pela internet vão bem, a situação não é a mesma quando o assunto são os livros digitais. Há dez anos, quando a Amazon lançou o seu leitor de livros digitais, o Kindle, muitos profetizaram que era o fim da indústria editorial na forma como a conhecíamos, pois haveria um grande abalo com uma queda drástica na venda de livros físicos. O vaticínio não se concretizou. De 2014 para 2016, as vendas de e-books caíram mais de 30% nos Estados Unidos, recuando de 1,6 para 1,1 bilhão de dólares — ou menos de 20% do faturamento total. No Brasil, a participação das edições digitais é ainda menor: fica em torno de 1% do total.
As vendas do livro em papel, enquanto isso, acumulam quatro anos seguidos de alta no mercado americano. O desinteresse pelos digitais é visto como uma resposta do público a um excesso de aparelhos eletrônicos em sua vida, que já está gerando malefícios para a saúde, como o aumento de casos de miopia (leia mais). Atentas a esse movimento, as editoras encontraram novas maneiras de fazer ressurgir o encantamento pelos livros físicos. Uma das estratégias foi aumentar a velocidade da produção das obras, permitindo que os títulos sobre temas atuais consigam chegar rapidamente às estantes. Trabalhar na impressão de obras esteticamente mais bonitas, com capa dura, também atraiu mais consumidores. O resultado apareceu: de 2013 para 2016, as vendas subiram de 4,9 bilhões para 5,3 bilhões de dólares nos Estados Unidos, sendo que os livros de capa dura respondem por 53% desse valor. Em resumo, o papel resiste.
Giovanni Magliano
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2017, edição nº 2553