Carta ao Leitor: o dever de informar
VEJA não poderia ocultar as ameaças feitas por uma organização terrorista a autoridades do peso do presidente da República
Quando se define “notícia”, a matéria-prima do jornalismo, como uma informação nova dotada de relevância pública, a chance de haver qualquer questionamento sobre a primeira parte da conceituação — “uma informação nova” — costuma ser pequena. O mesmo, porém, não se pode dizer da segunda. Afinal, o que deve ser considerado “de relevância pública”? Mais do que isso: embora a importância de alguns fatos, para toda a sociedade, possa ser inquestionável, os veículos de comunicação têm, invariavelmente, a obrigação de torná-los conhecidos? Noutras palavras: a imprensa deve divulgar sempre tudo o que sabe? Pense em um sequestro. Ainda que ele envolva uma figura pública, relatar algo antes que toda a ação tenha terminado pode pôr em risco uma vida. E os suicídios? Divulgá-los não provoca o encorajamento de tal ato naqueles que querem visibilidade, mesmo que já não estejam aqui?
Em um contexto semelhante encontra-se outro tema de enorme gravidade: o terrorismo. Não por acaso, a decisão de publicar uma reportagem sobre a Sociedade Secreta Silvestre (SSS) — o braço brasileiro de um grupo extremista chamado Individualistas que Tendem ao Selvagem (ITS), criado no México em 2011 — foi resultado de longa e profunda reflexão por parte de VEJA. Isso porque a SSS, que comprovou à reportagem ter sido a autora de atentados recentes ocorridos em Brasília, não fez nenhuma questão de esconder, em uma troca de mensagens com o editor sênior Thiago Bronzatto, que tem como um de seus alvos ninguém menos do que Jair Bolsonaro. O ódio ao presidente seria motivado, supostamente, por suas posições sobre o meio ambiente (razão pela qual o ministro da área, Ricardo Salles, “não descansará em paz”, segundo declarou a VEJA, em nome do grupo, um certo “Anhangá”).
Diante de tal cenário, por que a revista daria voz a esse grupo? A conclusão foi que não poderíamos ocultar as ameaças — iminentes ou não — feitas por uma organização terrorista a autoridades do peso do presidente da República. Desprezar essa informação poderia nos custar um preço altíssimo: a omissão na defesa de vidas humanas. Antes de uma tragédia, é fácil classificar essas conversas como palavras de um fanfarrão. Será que alguém levaria a sério os avisos dados pelos autores do massacre ocorrido em março numa escola em Suzano (SP)? Assim como a SSS, eles utilizavam com frequência um canal da deep web, a parte obscura da internet, para arquitetar seus planos. Nos Estados Unidos, vítimas do maior ataque terrorista da história, uma das mais pesadas críticas feitas aos órgãos de inteligência foi exatamente o fato de terem ignorado fragmentos de informação que relatavam um possível ataque da Al Qaeda às Torres Gêmeas. Mas como acreditar que aqueles homens escondidos em cavernas no Oriente Médio pudessem dar concretude a um plano tão mirabolante?
Considerando essas variáveis, resolvemos comunicar o conteúdo de nossa apuração à Polícia Federal, que vem no encalço do grupo há seis meses, e trazer essa reportagem ao conhecimento do leitor. A democracia tem alguns antônimos — um deles é o terrorismo. Mas a democracia tem também sinônimos, como a imprensa livre. Cabe a ela, entre outras funções, defender a própria democracia — sobretudo de seus antônimos. VEJA não abre mão dessa tarefa.
Publicado em VEJA de 24 de julho de 2019, edição nº 2644