O massacre era tão previsível quanto evitável. Na segunda-feira 14, em protestos que reuniram mais de 40 000 pessoas na Faixa de Gaza, ao longo da fronteira com Israel, sessenta palestinos foram mortos — a maioria a tiros disparados por soldados israelenses — e 2 400 ficaram feridos. Poucas horas depois, no mesmo dia, Ivanka Trump e Jared Kushner, respectivamente filha e genro do presidente Donald Trump, juntaram-se, todos sorrisos, ao premiê israelense Benjamin Netanyahu para inaugurar a embaixada dos Estados Unidos em Jerusalém. As sedes da maioria das representações diplomáticas estrangeiras concentram-se em Tel-Aviv desde que a parte oriental de Jerusalém foi subtraída do território palestino na Guerra dos Seis Dias (1967). A embaixada americana também era mantida em Tel-Aviv, apesar de o Congresso dos Estados Unidos ter aprovado uma lei em 1999 reconhecendo Jerusalém como “capital indivisível” de Israel. Todos os presidentes desde Bill Clinton abstiveram-se de ordenar a transferência da embaixada para a cidade. Coube a Trump dar esse passo, anunciado em dezembro do ano passado. Já naquele momento se previa que a decisão detonaria um novo ciclo de violência entre palestinos e israelenses. Não bastasse isso, a mudança de Tel-Aviv para Jerusalém foi feita no mesmo dia em que Israel comemorou setenta anos de fundação, fato histórico que para os palestinos marca o início da nakba (catástrofe, em árabe), que resultou na expulsão ou fuga de 700 000 árabes do território do Estado recém-criado.
Os protestos na Faixa de Gaza, que começaram em 30 de março, pretendiam, antes de mais nada, chamar a atenção mundial para a pobreza e o desemprego no território, que foi desocupado por Israel em 2005, mas permanece sob bloqueio marítimo, terrestre e aéreo imposto por tropas israelenses. A inauguração da embaixada americana e os discursos proferidos na ocasião serviram como provocação adicional — e poderosa. “Acreditamos que é possível para os dois lados receber mais do que precisarão dar para que as pessoas possam viver em paz”, disse Kushner na cerimônia de inauguração. No dia seguinte, circularam fotos daquela que teria sido a mais jovem das vítimas do massacre em Gaza: a menina Layla Gadhour, um bebê de 8 meses, que sucumbiu aos efeitos do gás lacrimogênio lançado pelos israelenses. As circunstâncias que fizeram com que a mãe palestina permitisse que seu bebê fosse levado para o meio de um protesto que estava sendo reprimido a tiros não foram esclarecidas, mas o episódio escancara um fato muitas vezes ofuscado pela brutalidade das forças israelenses: quanto maior o número de mortos, quanto mais dramáticas são as imagens das vítimas, maior a vitória do Hamas, o partido fundamentalista islâmico que governa Gaza, em sua estratégia de propaganda.
O Hamas vive um momento difícil. Desde que assumiu o poder em Gaza, em um golpe que expulsou do governo o grupo rival, o Fatah, em 2007, a economia no território apenas se deteriorou. Menos por culpa do bloqueio israelense e mais pela incompetência administrativa do Hamas e pela insistência em torrar seu orçamento em seu braço militar e em sucessivas escaramuças armadas com Israel, que acabaram por destruir boa parte da infraestrutura local. Os aliados regionais minguaram. A Síria, que servia de porto seguro para alguns de seus líderes no exílio, afundou em uma guerra civil que despertou antigas rivalidades de diferentes matizes, incluindo aquela entre xiitas e sunitas (o Hamas é sunita e o ditador sírio Bashar Assad é alauita, aliado dos xiitas). No Egito, país que controla o único posto fronteiriço que dá acesso à Faixa de Gaza, o governo da Irmandade Muçulmana, organização religiosa que serviu de inspiração para a criação do Hamas, foi deposto em um golpe militar em 2013. Um pouco antes, começou a minguar também a ajuda que o grupo recebia da Arábia Saudita, cujo governo criticou Israel pelas mortes do início da semana, mas não foi além disso. “Para a Arábia Saudita, a questão palestina deixou de ter tanta relevância. Mais importante é a ascensão do Irã e de seu programa de armas nucleares”, diz o cientista político e especialista em Oriente Médio Salim Mansur, da Universidade Western, no Canadá.
Na luta por sua sobrevivência política, o Hamas anseia por toda a atenção internacional que puder conseguir, mesmo que para isso seja necessário incentivar seus cidadãos a lançar-se como gado no matadouro em direção a tropas instruídas a atirar com munição letal. Se o massacre de seu povo serve aos propósitos propagandísticos do Hamas, por que motivo, então, em vez de entrar no jogo, o governo israelense não ordenou a seus comandantes que evitassem o uso de força desproporcional para conter os protestos?
A primeira explicação é que, pelo próprio histórico conturbado da formação das fronteiras de Israel, aceita-se no país que é preferível pagar pelo excesso do que falhar em protegê-las, e isso vale para qualquer governo — seja ele conservador, como o de Netanyahu, ou não. A verdade, porém, é que em nenhum momento houve um risco real de uma entrada em massa de manifestantes palestinos em território israelense. Os poucos que cruzaram a cerca voltaram correndo. Além disso, muitos dos feridos e mortos estavam a centenas de metros da divisória — alguns deles apenas parados, assistindo à manifestação. Aqui entra a segunda explicação para o uso de munição letal contra civis desarmados: Netanyahu, que nunca se preocupou muito com vidas palestinas, também não precisa perder o sono com a péssima repercussão internacional do massacre, pois tem o apoio irrestrito de quem mais lhe importa — o governo americano. Trump, afinal, não apenas estabeleceu um marco no reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, como, há duas semanas, tirou os Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã, ao qual Netanyahu sempre se opôs.
Os antecessores de Trump dificilmente teriam dado presentes de tal monta a Israel sem exigir algo em troca, como a disposição de fazer concessões aos palestinos. “Entre os maiores incomodados com essa postura de Trump estão os governos europeus. Para eles, a transferência da embaixada e a saída do acordo nuclear sem obter nada em troca vão trazer mais violência para o Oriente Médio e tornar a paz mais difícil de ser alcançada”, diz Robert Jervis, professor de política internacional na Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos.
Se Trump colhesse os resultados que espera, até seria perdoável que alienasse os aliados europeus e subordinasse sua política para o Oriente Médio à de Netanyahu. Mas nem isso está acontecendo. No Iraque, a coalizão política de Moqtada al-Sadr, que liderou a insurgência xiita contra a ocupação americana depois de 2003, venceu as eleições legislativas do domingo 13. Até na Ásia Oriental as coisas vão mal para a diplomacia americana. O tão esperado encontro de Trump com Kim Jong-un arrisca-se a naufragar. O líder norte-coreano ameaçou cancelar a reunião, prevista para 12 de junho em Singapura, se os americanos insistirem em incluir na pauta o desmantelamento de seu arsenal nuclear. Previsível.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2018, edição nº 2583