Era um acontecimento não de todo incomum nos anos 70, quando a segurança nos aeroportos era mais frouxa: em 27 de junho de 1976, os 248 passageiros de um jato comercial da Air France que ia de Tel- Aviv para Paris foram surpreendidos pelo anúncio de sequestro. De uma parada em Atenas, a aeronave foi desviada para Entebbe, em Uganda, pelos quatro terroristas — dois palestinos e dois alemães. Em conjunto, eles exigiam de Israel a libertação de 53 ativistas palestinos — novamente, uma demanda típica. Mas, assim que os passageiros foram transferidos para um terminal desativado no Aeroporto de Entebbe, cedido pelo ditador ugandense Idi Amin Dada, a situação mudou de caráter. Tendo recolhido o passaporte de todos, os guerrilheiros procederam a uma chamada tenebrosa: judeus para um lado, não judeus para outro. Os alemães Brigitte Kuhlmann e Wilfried Böse só então se deram conta de que qualquer ideal marxista que quisessem proclamar estava, na percepção pública, soterrado a partir daquele momento: os últimos alemães a ordenar a judeus que seguissem para a direita ou para a esquerda haviam sido os oficiais nazistas dos campos de concentração. 7 Dias em Entebbe (Entebbe, Inglaterra/Estados Unidos, 2018), que estreia na quinta-feira 19, do diretor brasileiro José Padilha, focaliza em parte o drama que se desenrolou no terminal nos sete dias do sequestro. De outra parte, ocupa-se da disputa no governo de Israel, entre os partidários de alguma negociação (como o primeiro-ministro Yitzhak Rabin) e os proponentes da tolerância zero (caso do adversário político de Rabin e então seu ministro da Defesa, Shimon Peres, que mais tarde se converteria à via diplomática). Aí está o centro do filme: na investigação das atitudes que condenam o impasse entre Israel e Palestina a permanecer sem solução. Quem espera ver um thriller terá ampla oportunidade de se decepcionar; os aficionados de questões geopolíticas possivelmente sairão mais satisfeitos.
Objeto de recentes ataques exaltados no Brasil por causa da série O Mecanismo, Padilha se volta agora para uma controvérsia de alcance global — e, aplicando a ela sua considerável capacidade descritiva, localiza no episódio de Entebbe um dos fulcros das doutrinas em vigor no Oriente Médio. Peres (Eddie Marsan) saiu vitorioso no seu embate de gabinete com Rabin (Lior Ashkenazi), e o saldo da operação militar que ele defendeu foi, nas circunstâncias, um sucesso: dos 106 reféns, quatro vidas se perderam, e um único soldado israelense morreu — o líder da unidade, Yonatan Netanyahu (Angel Bonanni), que virou herói nacional e plataforma para que seu irmão, o atual primeiro-ministro (e linha-dura) Benjamin Netanyahu, se lançasse na política. Embora muito do êxito da ação se deva ao recuo dos terroristas alemães, que não conseguiram lidar com a ideia de executar os reféns antes que os soldados adentrassem o terminal, consagrou-se a imagem de invencibilidade do Exército e do serviço secreto israelenses, e cristalizou-se o sentimento antinegociação.
Padilha, assim, emoldura o quadro objetivo do sequestro com um conjunto de traumas, aspirações e contingências que, três décadas após a II Guerra Mundial, atingiam um auge de reverberação. Se o estabelecimento do Estado de Israel, a partir de 1947, era uma reparação necessária ao genocídio, era também compreensível a indignação dos palestinos com a ocupação de seu território — e inevitável o partido que os vizinhos árabes de Israel tirariam desse descontentamento. Era natural ainda que os israelenses, assombrados pelo fantasma da suposta passividade dos judeus diante dos nazistas, rejeitassem qualquer conduta que parecesse indicar docilidade ou fraqueza — e que jovens alemães radicais como Böse (Daniel Brühl, de Adeus, Lenin!) e Brigitte (a inglesa Rosamund Pike) se entregassem com fanatismo a combater tudo o que, na sua leitura, fosse fascismo. Minucioso na reconstituição e parcimonioso nos julgamentos, Padilha entretanto defende a ideia de romper esse ciclo por meio de um recurso de imenso efeito estético e emocional: a encenação do balé Echad Mi Yodea pela companhia Batsheva, em que, ao som da tradicional canção da Páscoa que lembra a união do povo judeu com Deus, os bailarinos vão despindo seu traje ortodoxo — à exceção de um deles, que cai morto no fim de cada estrofe.
Publicado em VEJA de 18 de abril de 2018, edição nº 2578