Joesley Batista ainda não tem coragem de sair de casa. Quatro meses depois de ter acusado 1 829 candidatos eleitos (incluindo um presidente e uma ex-presidente da República) de receber propina de sua empresa, a JBS, ele diz não estar pronto para fazer o “teste da rua”. Acha que, hoje, sua imagem é a de alguém que cometeu uma série de crimes e não foi punido (ele obteve imunidade penal em troca das informações no acordo de delação premiada que assinou). Outro motivo que prende Joesley aos limites de sua casa, em São Paulo, é o medo de ser morto. “Romper com um sistema que ainda está instalado no poder não é fácil”, diz. Novos anexos de sua delação ainda estão sendo encaminhados à procuradoria (VEJA apurou que eles incluem áudios ainda não divulgados que envolvem parlamentares e um ministro do atual governo). O empresário diz esperar que suas informações ajudem a desmontar novos esquemas de corrupção. “Na hora em que os nossos anexos começarem a revelar outras organizações criminosas, aí talvez a sociedade vá olhar e dizer: ‘Pô, o Joesley teve a imunidade, mas olha como ele ajudou a desbaratar a corrupção.” Joesley falou a VEJA em seu escritório da JBS, em São Paulo.
Quatro meses depois de assinar um acordo de delação em que o senhor e executivos da sua empresa denunciaram 1 829 candidatos eleitos de 28 partidos, incluindo o presidente da República, o que mudou na sua vida? Ninguém sai de um processo desses como entrou. Esse negócio de virar colaborador da Justiça é muito novo para todo mundo. Um delator não “faz” uma delação simplesmente, ele vira uma chave. Muda sua forma de pensar, de agir. Aqueles amigos que você tinha já não servem mais. Se você mudou realmente, você muda de grupo e passa a enxergar as coisas sob outro ângulo.
Sob qual ângulo o senhor enxergava antes? Nós somos empresários e os empresários estão subordinados ao Estado. Se os mandatários do Estado negociam com você daquela forma, você acaba achando que opera dentro de um padrão de normalidade. A gente vai ficando anestesiado.
Quando o senhor começou a mudar de ideia? A primeira vez que a polícia fez busca e apreensão na minha casa foi em 1º de julho de 2016. Graças a Deus eu não estava, tinha acabado de chegar de uma viagem internacional com a minha família. Mas, como tenho câmeras de segurança lá, acessei pelo celular e assisti ao vivo àquele monte de gente andando no meu quarto, pelos corredores. Olhava aquilo parado, congelado. Não é uma coisa com que você esteja acostumado, e eu não estava entendendo o que estava acontecendo. Da mesma forma, acho que a grande maioria dos políticos e dos empresários ainda não entendeu o que está acontecendo.
Qual a razão que mais pesou na sua decisão de delatar? Percebi que tinha mudado a regra do jogo. A lógica do empresário é dançar conforme a música.
Como foi que o senhor virou a chave? Foi quando pensei: o que é que está acontecendo? O que mudou? Porque alguma coisa mudou. A polícia nunca tinha ido à minha casa e agora vai. Estou sendo acusado, isso não existia antes e agora existe, pô! Aí, pedi ao Francisco (Francisco de Assis e Silva, diretor jurídico da JBS): “Me dá tudo o que mudou na lei penal nos últimos cinco anos”. Eu li a lei do caixa dois, li o negócio da prescrição e cheguei à lei 12 850, que é sobre as organizações criminosas. Mas a lei 12 850 fala algo simples: “Quatro pessoas que se juntam e cometem crime de qualquer natureza formam uma organização criminosa”. Pode ser crime de caixa dois, de evasão de divisas — crimes empresariais, crimes que as empresas cometem, quer dizer, que eu cometia, pelo menos. Mas isso a gente não encarava como crime. Na nossa lógica, no máximo, a gente tinha sonegado um imposto. Mas lá dizia que eu tomava parte em uma organização criminosa. Uma coisa que eu achava que só fazia quem traficava armas, drogas — organização criminosa era o PCC. Mas a lei dizia: “Para combater o crime organizado, pode prender para investigar e pode delatar para limpar seus crimes”. É a lei. Então, a partir do momento em que o procurador olha para a sua cara e enquadra você em uma organização criminosa, ele pode, sim, ir à sua casa e te prender pra investigar.
Foi quando o senhor percebeu a gravidade da situação? Sobre isso tenho uma história curiosa. Na Operação Greenfield, na primeira vez que a Polícia Federal veio à minha empresa, liguei para o Francisco e perguntei: “O que é que está acontecendo?”. Ele: “Joesley, conversei com o delegado, esse negócio é só um PIC — ‘procedimento de investigação criminal’. A gente não tem processo, não está sendo acusado de nada”. Passou meia hora, ele disse: “Ó, Joesley, bloquearam as contas”. Passou mais meia hora, ele disse: “Pediram os passaportes…”. Mais meia hora, bloquearam os bens, mais meia hora: “ó, pediram a sua saída da dirigência da empresa”. O delegado falou: “Estamos só investigando”. Essa é a lógica deles — que hoje eu acho certíssima, está na lei.
Mas o senhor não imaginava que isso fosse acontecer um dia? Olha, pensa nesta situação: você, um empresário, pousa num heliporto em Jacarepaguá com uma mala de dinheiro para entregar não ao Eduardo Cunha, mas ao presidente da Câmara dos Deputados, que estava lá com seguranças, num carro oficial…
Como foi isso? Ele vinha de carro, os seguranças ficavam lá fora. Tinha uma sala, a gente entrava, subia para uma sala de reuniões. Muitas vezes ele vinha com uns assessores pessoais, e esses assessores transferiam o dinheiro da minha mala para a mala deles.
Chegou a entregar quanto? Coisa de 1 milhão, não passava disso.
Mais de uma vez? Três, quatro vezes. Eu tinha noção total de que aquilo estava errado. Só que, por outro lado, eu estava lá com o presidente da Câmara. No Ministério da Fazenda, eu não tratava com Guido Mantega, e sim com o ministro da Fazenda, e ele estava tratando comigo de coisa errada. Repito: estive no Palácio com a Dilma, na mesa redonda dela. Não foi com a Dilma, foi com a presidente da República. Falando de coisa errada. Assim como eu não gravei o Temer, eu gravei o presidente da República. E não inventei o que ele falou. Só gravei o que ele falou.
Como era sua relação com o Temer? Nós nunca fomos amigos. Eu só estive com Temer para falar de negócios.
Mas ele ia à sua casa e o senhor ia à casa dele? Sim. Eu ia à casa dele, ao escritório dele.
Os negócios sobre os quais os senhores falavam era propina? Era propina, ilícito. Ele me pedindo dinheiro, eu pedindo alguma coisa a ele no Ministério da Agricultura…
O presidente era direto? Ele é 100% direto. É engraçado, né? Esse Temer que você vê na televisão é falso. O Temer verdadeiro é o que eu gravei. Aquele Temer que fala sem cerimônia.
Temer parece um homem cuidadoso, quase monossilábico. Na forma, ele é cuidadoso. Gesticula bem as mãos, fala mais formalmente, não fala palavrão, fala baixo. Mas no conteúdo é 100% direto.
Só Temer é assim? Os políticos em geral perderam o pudor de falar de propina. Por vezes, eu tratei de propina com ministros no ministério. Falando, naturalmente, no escritório: o Guido, ministro da Fazenda, os ministros da Agricultura, o Wagner Rossi, o Toninho Andrade (ambos foram ministros da Agricultura). A Dilma, pô! Falei de propina com a presidente na sala da presidente da República.
O senhor falava “propina”? Não, essa palavra eu aprendi agora, no Ministério Público. Eu falava “ajuda”. “Vou dar uma ajuda, um apoio e tal.”
O presidente Temer também falava de “ajuda, apoio”? Não, Temer sempre foi muito direto, ele pedia dinheiro mesmo. Dizia: “Olha, Joesley, precisava de 3 milhões, precisava de 300 000 pra ver um negócio da campanha lá”. Estilo, né? Eduardo Cunha também sempre falou direto de dinheiro. O PMDB da Câmara é o mais explícito. Eles dizem: “É tanto”. Eram 3 milhões, 5 milhões, 10 milhões.
O governo tentou evitar sua delação? Eu vivia perguntando aos políticos: “Qual vai ser a solução para nós?”. Perguntava ao Eduardo Cunha, ao Geddel (Geddel Vieira Lima, ex-ministro da Secretaria de Governo do presidente Temer). Nesse processo todo, era claro que não tinha solução. Até o dia em que eu fui ao presidente da República e ele disse que eu tinha de continuar pagando aos presos e que o fato de eu estar comprando juízes era uma boa, que eu estava no caminho certo. De outro lado, pode ser fantasma da minha cabeça. Mas alguns advogados se aproximaram de mim. Chamo a todos de “teleguiados”. Acho que estavam se aproximando de mim, querendo trabalhar para mim, para me convencerem a não fazer delação.
Eram advogados ligados ao grupo do presidente Temer? Um deles era o Tomaz, que depois foi preso (refere-se ao advogado Willer Tomaz, que vendeu influência no Judiciário a Joesley). Então não são fantasmas. Por quatro ou cinco meses, André Gustavo (marqueteiro, amigo de Joesley, atualmente preso) me sugeriu que eu encontrasse esse Tomaz. Esse Tomaz é um dos que se aproximaram de mim, acredito, porque estava trabalhando para evitar minha delação. O Ângelo, também (refere-se ao procurador Ângelo Goulart, acusado de dar informações sigilosas a Joesley). Acho que estou certo na minha desconfiança porque, quando o Ângelo e também o André Gustavo ficaram sabendo que eu ia fazer a delação, o grupo do PMDB imediatamente se afastou de mim. Pessoas que vinham falar comigo desmarcavam a reunião. Percebi esse movimento muito claramente. Pensei: “Putz, o Tomaz é do grupo do PMDB”. Teve um outro advogado importante que se aproximou de mim. O Tomaz eu acho que era de uma ala do PMDB do Senado. Esse outro era “teleguiado” pelo pessoal da Câmara. Mas confesso que o contratei mesmo com essa desconfiança. Falei ao Francisco: “Vamos contratá-lo, dar boas notícias a ele, dizer que eu não quero delatar, e ele vai contar isso ao pessoal do PMDB da Câmara. E o pessoal vai ficar tranquilo, e eu vou conseguir fazer a delação”. Gastei um dinheiro com esse advogado, mas funcionou. O plano era me prender e acabar com a minha empresa. Esse era o plano deles.
O plano do governo Temer, o senhor quer dizer? Claro. Se o presidente da República fala para eu continuar a fazer o que eu disse que estava fazendo, só pode ser isso… Um sujeito inteligente como Temer, com 70 e tantos anos, me diz para continuar pagando aos presos e continuar pagando aos juízes…? Só se for por covardia.
Naquele momento, o senhor achou que estava sendo rifado? Eu saí achando o seguinte: qualquer pessoa que ouvisse aquela história minha, de que eu estava pagando a presos e juízes, teria de dizer: “Olha, Joesley, cuidado, isso aí que você está fazendo é muito perigoso. Pagar a preso e comprar juiz é coisa de louco”. Qualquer sujeito com um mínimo de bom-senso ou apreço por você, ainda mais um sujeito que me atende às 10 da noite em casa, que já foi à minha casa diversas vezes e eu à dele, me daria um conselho sensato…
Qual foi a sua maior perda nesse processo de delação? A maior perda foi me transformar, do dia para a noite, de um empresário respeitado, admirado e querido num sujeito que fica sendo esculhambado e chamado de bandido pelo presidente da República. Esse é um duro custo reputacional. Mas eu vou me recuperar, acho que a sociedade mais para a frente vai entender o que eu fiz.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2017, edição nº 2546