Era 6 de dezembro de 2016, e o tucano João Doria havia acabado de ser eleito prefeito de São Paulo. Antes mesmo de sua diplomação, ele já anunciava medidas que poderiam ter impacto não só nas contas municipais, mas também nas do governo do estado, como o congelamento da tarifa de transporte (que inclui os trens da CPTM, de gestão estadual). O governador e grão-tucano Geraldo Alckmin, então muy amigo do recém-chegado Doria, foi questionado em um círculo de convivas em Brasília se não estaria incomodado com o excesso de ativismo do pupilo. “Ele acabou de ganhar. Deixem ele curtir”, replicou. Dez dias depois, no aniversário de João Doria, no restaurante La Tambouille, em São Paulo, entre os raros convidados fora do círculo familiar estavam Alckmin e a mulher, Lu. O casal era, afinal, “família” também.
Oito meses separam os tempos de amor fraternal do momento mais tenso da relação entre criador e criatura. Galopando na corrida para a candidatura à Presidência da República em 2018 — Doria, nas coxias; Alckmin, abertamente —, eles hoje só conversam protocolarmente. Em reunião ocorrida há algumas semanas no Palácio dos Bandeirantes, com a presença de secretários e assessores, o prefeito pediu sutilmente ao governador uma conversa reservada. A resposta de Alckmin, menos sutil, foi que poderiam falar ali mesmo.
Na semana passada, a visita do presidente Michel Temer a São Paulo ajudou a deixar claro que prefeito e governador correm agora em raias distantes. A cerimônia que motivou a viagem de Temer se deu no bunker de Doria, a sede da prefeitura paulistana. Alckmin não compareceu ao evento. Preferiu receber prefeitos no Palácio dos Bandeirantes, e só encontrou o presidente no dia seguinte. Na cerimônia na prefeitura, Doria rasgou elogios a Temer, de quem ouviu que o PMDB está de portas abertas para recebê-lo, caso o ar se torne rarefeito no PSDB. O prefeito, disse Temer, “não tem visão só municipalista, mas nacional”. Elogios de um presidente com recorde de impopularidade não são um grande ativo numa eleição. Mas mostram como tilinta o pêndulo do poder. Desgastado, Temer fareja apoio de quem quer que possa lhe ajudar, seja no âmbito das reformas, seja nos seus planos para 2018, que incluem eleger um governador em São Paulo. Em nenhum dos dois casos Alckmin lhe tem servido.
Com a velha dissimulação tão própria da política, Doria nega que queira sair do PSDB para ser candidato a qualquer cargo por outra legenda — além do PMDB, o DEM já havia lhe sinalizado guarida. Mas, nos bastidores, o prefeito reúne artilharia para 2018. A internet tem sido o seu maior trunfo. Seus mais de 4 milhões de seguidores nas redes sociais vibram com os vídeos em que ele vocifera contra seu alvo predileto e incondicional: Lula e petistas. Os ataques agora começam a render reações — como a ovada que recebeu em Salvador. Em resposta, Doria pregou a união nacional, mas o fez, como sempre, com um discurso em tom de confronto, que não une ninguém. Mas sua beligerância começa a agradar a uma parcela de caciques de sua sigla. Alguns chegaram a dizer a Alckmin — mais afinado com o estilo Mario Covas de articular, que os tucanos chamam de “jogar parado” — que ele deveria começar a ser mais agressivo. “Assim, Lula vai lhe comer”, disse um grão-tucano ao governador. “Eu nem sei se ele será mesmo candidato”, foi sua resposta.
Na sexta-feira, Alckmin viajou a Porto Alegre para se encontrar com o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB-RS), chamado de “Doria gaúcho”, ainda que ambos sejam água e vinho quando o assunto é marketing. Para tucanos, trata-se de uma jogada do governador para impedir o avanço do ex-pupilo naquele território. Um dia antes da viagem, Alckmin deu uma entrevista à Rádio Gaúcha em tom mais provocador do que de costume, atacando o suposto apoio de Doria a Temer, um presidente que “sofre de legitimidade” — o que sinaliza que Alckmin parece disposto a surfar na olímpica impopularidade de Temer. Declarou também que, se for candidato em 2018, vai “trabalhar para unir o Brasil”, buscando alianças “com quem não tiver candidato”. Foi a primeira vez que o governador falou de forma contundente como postulante à Presidência da República.
O xadrez tucano, porém, ainda está longe de ser definido. O partido, que já não conseguiu chegar a um consenso sobre a votação da denúncia contra Temer, também não consegue entrar em acordo nem mesmo quando o assunto é um vídeo institucional. O presidente interino, Tasso Jereissati, encomendou uma propaganda que traz uma autocrítica inédita do partido. A menção de que o PSDB errou foi feita quatro vezes ao longo dos trinta segundos de vídeo. Não agradou a cabeças brancas nem pretas do tucanato. Alckmin foi o único cacique a defender publicamente o vídeo — ainda que, na discrição de seu gabinete, o tenha criticado. “Vejo que essa questão de ‘o PSDB errou’ é, no fundo, um ato de humildade. Santo Agostinho dizia: prefiro os que me criticam, porque me corrigem, aos que me adulam, porque me corrompem”, disse o governador. João Doria, por sua vez, afirmou que a mensagem “não foi justa” com o partido.
Se não há unidade sobre o vídeo, há menos ainda sobre o candidato. Oficialmente, caciques dizem estar fechados com Alckmin. Tanto que, na semana passada, o governador acertou com as lideranças tucanas que o PSDB deve anunciar o presidenciável de 2018 até dezembro deste ano. É mais uma estratégia do governador para frustrar as ambições de Doria, que teria de lidar com o desgaste de se lançar candidato sem ter completado nem um ano à frente da prefeitura. Contudo, a ambiguidade característica dos medalhões do PSDB impede que o próprio governador dê como certo o apoio prometido. Alguns inquilinos do Palácio dos Bandeirantes estranharam a recente aproximação do prefeito com o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, que está na linha de frente do governo Temer, com a ajuda de dois tucanos atropelados pela Lava-Jato, Aécio Neves e José Serra. Nenhum deles morre de amores pelo governador. No ninho tucano, voltou a circular recentemente uma frase célebre de Tancredo Neves — a de que “não se faz política sem vítimas”. A ave abatida, para alguns, pode ser o próprio governador. Já aliados de Doria o alertam para não descuidar da cidade, correndo o risco de se enrolar no teorema Serra — que deixou o governo de São Paulo para tentar a Presidência e, derrotado, nem a prefeitura paulistana conseguiu mais.
Doria não tem muito a apresentar. Teve de reduzir em 4,5 bilhões de reais a previsão de investimentos para 2017. As parcerias com empresas ainda não se converteram em caixa para a prefeitura. A ação de desmonte da Cracolândia, um ninho de horror no centro de São Paulo, apenas deslocou o problema para outra área da cidade. Entre os dias 10 e 19 de julho, VEJA visitou dez praças em cinco regiões da capital paulista incluídas no programa Cidade Linda — apenas duas estavam em bom estado de conservação. Isolados, esses resultados não significam obviamente que o prefeito faz um mau governo. Mas a agenda apertada de viagens nacionais e internacionais (em sete meses de administração, ele passou 61 dias fora, ou 29% do período), somada ao pouco tempo que passa, de fato, governando, já começa a impactar negativamente sua gestão. Uma pesquisa qualitativa interna encomendada pela prefeitura deu sinais de que o governo municipal está envelhecendo rápido demais. Um tucano mais engraçadinho se arrisca a dizer que, se envelheceu, é hora de fazer outro governo. Federal, quem sabe.
Com reportagem de Pieter Zalis, Eduardo Gonçalves e Eduardo F. Filho
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2017, edição nº 2543