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Era uma vez Zuma

Por ameaçar o futuro eleitoral do partido de Nelson Mandela - o CNA -, presidente da África do Sul é forçado a se retirar do poder

Por Duda Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h00 - Publicado em 16 fev 2018, 06h00

Com sua renúncia, na quarta-feira 14, Jacob Zuma, de 75 anos, encerrou um governo decrépito que se estendeu por nove longos anos na África do Sul e se caracterizou pela sua capacidade de devorar adversários políticos. O que apressou seu fim, que era aguardado apenas para o ano que vem, não foram as 783 denúncias de corrupção, nem suas declarações desastrosas ou sua vida privada (membro da etnia zulu, ele tem quatro mulheres, duas ex, vinte filhos reconhecidos e pelo menos uma acusação de estupro). A principal força que o empurrou para o precipício foi a incerteza que seu comportamento lançou no futuro do seu partido, o Congresso Nacional Africano (CNA). Criada nos anos 1940, a legenda do mítico Nelson Mandela teve papel decisivo na luta contra o apartheid, o regime de segregação racial, e governa o país desde 1994. Com 60% das cadeiras no Parlamento, o CNA poderia perder a maioria nas eleições do ano que vem por causa dos escândalos de Zuma.

A exemplo do que ocorreu em outros países africanos, como Zimbábue, Angola, Moçambique e Namíbia, na África do Sul o partido que comandou a independência da dominação colonial branca soube quebrar a antiga ordem hierárquica, mas falhou em adaptar o governo a uma sociedade mais dinâmica e empreendedora. O populismo de Zuma, sua prepotência e seu descaso com o dinheiro público afastaram da base de seu partido principalmente a classe média negra das grandes metrópoles. Em 2016, o CNA perdeu a prefeitura das três maiores cidades do país: Pretória, Mandela Bay e Johannesburgo.

Em dezembro passado, Zuma foi forçado a ceder a presidência do partido. Ele ainda tentou emplacar no posto uma de suas ex-mulheres, assim como fez Robert Mugabe no Zimbábue, mas fracassou. Quem acabou sendo nomeado foi Cyril Ramaphosa, que na quinta-feira 15 assumiu também a Presidência da África do Sul. No país, é o líder do partido com maioria no Congresso que assume o governo. Zuma está impedido de tentar um terceiro mandato.

Uma agência inglesa criou uma campanha para atacar os rivais de Zuma, que eram tidos como agentes do “capitalismo branco monopolista”

A queda de Zuma tem raízes em laços históricos entre a África do Sul e a Índia, de onde partiram os antepassados de 2,5% da atual população sul-­africana. Com essa relação antiga entre as duas nações — que levou inclusive Mahatma Gandhi a passar um período no país africano —, uma família indiana interessou-se em instalar-se na África do Sul às vésperas do fim do apartheid, com a intenção de aproveitar as oportunidades comerciais que se abririam uma vez abolido o regime racista. Ao chegar ao país, em 1993, o indiano Atul Gupta fundou uma empresa de informática chamada Sahara Computers. Anos depois, ele e seus descendentes desenvolveram aquilo que seria sua especialidade: a proximidade com o governo. Em 2008, oito meses após Zuma assumir a presidência do CNA, os Gupta admitiriam no conselho de diretores da empresa dois de seus filhos, ambos nos seus 20 e poucos anos: Duduzane e sua irmã, Duduzile. Os vínculos com o poder levaram os Gupta a criar um império com minas e companhias de comunicação. Em 2016, Atul Gupta era o mais rico sul-africano não branco. Sua família era tão poderosa que nomeava pessoas para cargos ministeriais no governo de Zuma.

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Com as acusações se acumulando, Zuma foi para o contra-ataque. Para isso, contou com a ajuda de uma empresa de relações públicas inglesa, a Bell Pottinger, contratada por uma companhia dos Gupta. A firma também tinha como clientes a mulher do ditador sírio Bashar Assad, o presidente da Bielorrúsia, Alexander Lukashenko, e o corredor amputado Oscar Pistorius, condenado pelo assassinato de sua namorada. A empresa criou uma campanha em que os adversários do presidente eram acusados de ser parte de um “capitalismo branco monopolista” ou de defender um “apartheid econômico”. Era com termos assim que a Bell Pottinger preenchia as páginas dos discursos de membros do CNA. Quando a operação para explorar o ódio racial foi descoberta, diversos clientes mundiais cancelaram seus negócios com a empresa. Em abril, o contrato com os Gupta foi suspenso. Na manhã da quarta-feira 14, policiais fizeram uma batida na casa da família.

Sem influência no governo que se iniciou na semana passada, Zuma enfrentará um dos piores medos de governantes autoritários que perdem os laços com o poder: ter de pagar pelos próprios atos na Justiça. Ao CNA, restam poucos meses para tentar reabilitar a própria imagem e, assim, aparecer com boas chances nas eleições do ano que vem. O que se viu até agora foi a melancólica desidratação do legado de Nelson Mandela.

Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2018, edição nº 2570

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