Fazer o bem, mas olhando a quem
Quem vai nos guardar dos algoritmos vigilantes das redes sociais?
Quem guardará os guardiões é uma pergunta tão boa que vem sendo repetida há 1 900 anos, desde que foi escrita pelo poeta Juvenal nas Sátiras, em que tratava de temas prementes na Roma do século II da era cristã, como o casamento entre homens e a inconstância conjugal das mulheres. Tirada do contexto original (a coisa envolvia a preocupação dos maridos com a tal proclividade feminina à infidelidade — mais sobre isso no fim desta coluna), ela se transformou no clássico sobre as garantias possíveis aos cidadãos diante do poder das instituições de Estado. A revolução permanente criada pela era digital nas formas tradicionais de comunicação deu uma atualidade sem precedentes à pergunta. Quem vai nos guardar dos algoritmos vigilantes do Twitter, do Facebook ou do Google? Quem nos garante que, movidos pelos melhores propósitos de combate às fake news, os monopólios aos quais entregamos voluntariamente todas as informações sobre nossa vida não se transformem no mais eficiente mecanismo de censura já concebido pela humanidade — ou até a meta-humanidade, nos casos que envolvem a inteligência artificial?
A neutralidade e a imparcialidade esperadas dos algoritmos regidos pelas regras matemáticas têm esbarrado nos mesmos, e eternos, problemas das inconstantes preferências humanas, segundo indicam alguns resultados verificados nos Estados Unidos. Basta checar palavras-chave como “Twitter” ou “Google”, “pede desculpas”, “conservador”. Pois é, os algoritmos do bem parecem ter uma estranha tendência a colocar no cantinho do castigo, ou praticar o temível shadow banning, ou espalhar informações derrogatórias sobre políticos ou comentaristas de direita. Um dos casos mais conhecidos, que seria engraçado pelo absurdo se não revelasse tanto de parcialidade, é o do Partido Republicano da Califórnia. Num dos quesitos associados às buscas digitais, aparecia no item ideologia: nazismo. O Google pediu desculpas, atribuiu o erro à Wikipédia e ao vandalismo digital. Só faltou o coelhinho da Páscoa.
Algumas das melhores reportagens sobre os desvios dos poderosos guardiões têm sido feitas pela VICE News, honrando o mandamento jornalístico da apuração dos fatos, sem pretensão de imparcialidade — tem simpatias à esquerda, mas vai atrás da melhor representação da realidade que consegue encontrar. Uma das mais recentes mostra o shadow banning no Twitter de personalidades como Ronna McDaniel, presidente do Partido Republicano, e deputados da mesma filiação. A prática equivale a ser mandado para a Sibéria digital. Os perfis dos exilados são obscurecidos nas buscas de forma assustadoramente parecida com aquela usada pelos soviéticos para apagar as fotos dos líderes comunistas à medida que iam caindo em desgraça.
Bloquear manifestações de ódio e a disseminação de notícias falsas, antigamente chamadas de boatos, está na origem do intervencionismo. Juvenal, que escrevia para um público conservador, satirizando relações entre eunucos e o casamento de um patrício com outro homem, sem contar as mulheres que, mesmo trancadas e vigiadas, converteriam facilmente os guardiões para seu lado (daí o dito famoso), estaria ferrado. Iria direto para o castigo digital.
Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2018, edição nº 2593