Há várias circunstâncias excepcionais na vida do economista Otávio Espinhosa. Ele é um gênio matemático que, enquanto examina o cardápio de um restaurante japonês, se distrai convertendo, de cabeça, o preço do shimeji de real para dólar. Criado só pelo pai golpista, que viria a ser condenado por estelionato, nada sabe sobre a própria mãe. Estudou economia em Harvard, tentou a vida acadêmica com uma tese frustrada sobre os entraves que o Estado impõe ao desenvolvimento do Brasil e ainda publicou, com o pseudônimo Kelvin Oliva, um livro de autoajuda, A Matemática da Vida. No entanto, nas primeiras páginas de A Tirania do Amor, o novo romance do escritor curitibano (por adoção: nasceu em Santa Catarina) Cristovão Tezza, são dois fatos comparativamente bem triviais que atormentam o personagem: ele descobre que Rachel, sua mulher, está tendo um caso, e desconfia que vai ser demitido do emprego em uma empresa de investimentos. A despeito de todo o seu prodigioso talento para os números, Espinhosa emperra em uma carreira profissional medíocre e em uma vida afetiva frustrante. Sua perspectiva desencantada (mas não inteiramente desprovida de esperança) cabe como a proverbial luva em uma ficção sobre o Brasil contemporâneo.
Um dos escritores mais realizados da literatura brasileira atual, Tezza já se dedicara às crises correntes e persistentes do país em seus dois romances anteriores, O Professor e A Tradutora. O destemor de lidar com a matéria perecível das notícias da hora é ainda mais notável em A Tirania do Amor, cuja ação transcorre em um dia único do ano passado. Há alusões aos tropeços éticos e políticos do governo Temer, embora o nome do presidente não seja mencionado (colegas de Espinhosa se perguntam se “o homem” vai cair), e a empresa em que Espinhosa trabalha é investigada por uma operação policial que evoca a Lava-Jato (o cenário, porém, não é a Curitiba habitual do escritor, mas São Paulo). “Estou imerso na vulgaridade”, constata Espinhosa, amargurado diante de seus fracassos acumulados. O romance, desde os primórdios com o Dom Quixote, de Cervantes, tem a vocação para a vulgaridade — para o barulho vivo das ruas paulistas por onde Espinhosa transita e para a turbulência ainda maior de sua consciência aflita.
Dinâmica, a narrativa de Tezza vai e volta nos eventos daquele dia em que Espinhosa, desalentado pelo provável fim de seu casamento, contempla até a possibilidade de “abdicar de sua vida sexual”. Em meras duas páginas, o leitor é conduzido de uma visita prospectiva a um possível novo local de trabalho (onde também se abrem insuspeitas possibilidades eróticas), já de noite, às mensagens trocadas entre a mulher e sua amante que Espinhosa lera, na madrugada anterior, no computador de Rachel, e daí para um agradável almoço com a filha no restaurante japonês (a relação com o filho, que só fala com os mais agressivos clichês da esquerda, é bem mais tensa). Naturalmente, Espinhosa também revisa episódios do passado. O efeito desse cruzamento de vários planos narrativos é duplo: o leitor consegue ao mesmo tempo vislumbrar realidades amplas e mais ou menos abstratas — o Brasil, o mundo, as crises da economia, os impasses da política — e penetrar surdamente na intimidade de Otávio Espinhosa.
Espinhosa gosta de imaginar-se um parente distante do filósofo judeu holandês Baruch Espinoza (1632-1677), de cuja Ética sabe citar grandes passagens de cor. É uma evidente ironia que seu único livro publicado seja um manual de autoajuda assinado com nome falso — e cujas vendas não foram tão compensadoras. Haverá outras tantas ironias em A Tirania do Amor, destinadas a alvos os mais diversos, da vida acadêmica ao mundo corporativo. A compreensão matemática que Espinhosa tem do mundo anda lado a lado com essa verve irreverente. O personagem é um grande feito de seu criador: um homem invulgar imerso na vulgaridade.
Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581