‘Irmãos, não se ofendam’
O padre polonês Krzysztof Charamsa, de 44 anos, foi afastado do Vaticano por assumir a homossexualidade
Na vida, acredito que todos nós temos apenas um ponto em comum: somos diferentes. Eu sou um sacerdote católico gay. Nasci na Polônia, em 1972, durante uma ditadura comunista em um país muito católico. Sempre fui profundamente religioso — desde pequeno minha fé era exigente, uma fé de coroinha severo e rigoroso, para dizer o mínimo —, e meu sonho era tornar realidade minha vocação para ser sacerdote. Confesso que talvez fosse um pouco ingênuo por acreditar tanto na Igreja, mas minha fé era sincera. Tive certeza do amor de Deus e continuo a tê-la.
Juntamente com o sonho, eu carregava uma grande tragédia: a descoberta, ainda na adolescência, de minha identidade sexual. Falo em tragédia porque, na Igreja Católica, os homossexuais ainda são considerados doentes mentais. No decorrer dos séculos, milhares de pessoas com desejos e sentimentos homossexuais passaram por seminários católicos onde eram doutrinados pela exegese “verdadeira” de textos paulinos sobre homossexualidade, ao ritmo de sussurros a seus ouvidos: “Odeie os homossexuais, eles serão condenados por toda a eternidade e não estarão conosco no paraíso”.
Em minha formação sacerdotal, também acreditei nisso. Durante muitos anos, tive certeza de que minha Igreja fez o correto quando perseguiu e discriminou pessoas homossexuais. Sempre aprendemos isso. Passei por seminários na Polônia, na Suíça e em Roma — esse último, um pesadelo. Lembro-me, entre diversas situações desconfortáveis, daquele ambiente recluso, onde só havia homens vestidos, paradoxalmente, com roupas de mulher (batinas, alvas, casulas… — aliás, pergunto-me quando o mundo começará a pedir explicações sobre a necessidade inexorável desses uniformes), de reuniões intermináveis com o reitor que mais pareciam discursos de ditadores sul-americanos, sem pé nem cabeça, e sem direito a questionamentos.
Durante grande parte de minha vida, lutei contra mim mesmo, não aceitando minha natureza. Como uma espécie de fuga, dedicava-me cada vez mais aos estudos. Concluí os cursos de filosofia, teologia e bioética. Dediquei-me a minha vocação fielmente e acabei construindo uma importante carreira no Vaticano. Fui oficial da Congregação para a Doutrina da Fé, encarregada precisamente de defender a doutrina da Igreja. Passei dezessete anos morando em Roma, onde, em outubro de 2015, resolvi afirmar ao mundo a liberdade e a felicidade de ser eu mesmo, sem culpa. Era véspera do Sínodo dos Bispos sobre as Famílias, no Vaticano. Queria que a Igreja e minha comunidade soubessem que eu era um padre homossexual, orgulhoso de sua identidade. Estava disposto a pagar as consequências: fui afastado de minhas atividades. Escrevi uma carta ao papa Francisco sobre tudo o que eu pensava. Nunca obtive resposta.
A Igreja me deu, sim, estudo, trabalho, carreira, salário. Mas hoje penso que me tomou muito mais: tirou minha dignidade. Claro que não esperava que a Igreja aceitasse mansamente o instituto matrimonial e familiar dos cristãos homossexuais. Não sou tão idealista assim. Mas esperava que, ao menos, atenuasse suas irracionais condenações categóricas. Ao contrário: aquele ataque cotidiano e aquela humilhação contínua me despojaram da dignidade, como se a felicidade devesse contemplar apenas as famílias católicas que nunca conheceram o divórcio, o aborto e sofrimento algum, graças à assistência constante da Igreja em seus quartos de dormir. Em meu quarto, entra quem eu quero, não quem o clero reprimido quer. A experiência do amor é tão importante quanto a da fé e a da vocação de ser sacerdote.
* Krzysztof Charamsa lançou recentemente a autobiografia A Primeira Pedra: Eu, Padre Gay, pela Editora Seoman.
Depoimento a Thaís Botelho
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2017, edição nº 2541