Marcha da insensatez
É melhor que a comunidade acadêmica seja livre para criar excrescências do que precisar de autorização prévia de um ministro da Educação
O primeiro passo da marcha da insensatez deu-se quando um professor da Universidade de Brasília decidiu criar um curso sobre o seguinte tema: “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”. A ementa do curso, na qual se pode ler um resumo do que será ensinado, refere-se ao impeachment de Dilma Rousseff como “ruptura democrática” e apresenta o governo de Michel Temer como um instrumento do “retrocesso nos direitos e restrição às liberdades”. Com esse enfoque, fica bastante claro que o curso da UnB se assemelha a uma doutrinação político-partidária, concebida à perfeição para animar plateias petistas. É ruim, para dizer o mínimo, que uma universidade ocupe seus recursos materiais e intelectuais para flanar no proselitismo.
Mas, anunciado o curso, deu-se então o segundo e mais temerário passo da marcha da insensatez. O ministro da Educação, Mendonça Filho, encheu-se de indignação com o conteúdo do curso e acusou-o de ser o que realmente é — “uma disciplina criada exclusivamente para militância partidária”. Em seguida, em nota oficial, anunciou que pediria a quatro órgãos federais — a Advocacia-Geral da União, o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral da União e o Ministério Público Federal — a abertura de uma investigação para apurar se os professores da UnB não haviam cometido um ilícito previsto em lei.
Estamos às vésperas de completar trinta anos da Constituição de 1988, que consagrou a autonomia universitária e, também, a liberdade de expressão — duas conquistas democráticas que se reivindicavam desde os tempos da ditadura militar. Somados, os dois preceitos ressaltam a insensatez do ministro ao insurgir-se contra o tal curso, pois a comunidade acadêmica tem a liberdade de criar o que quiser — e é essencial que seja assim. Seria altamente desejável se criasse apenas cursos de excelência, mas é melhor que seja livre para criar excrescências acadêmicas do que precisar de autorização prévia de um ministro da Educação. Só é assim nas ditaduras e nos regimes autoritários.
Em resposta à afronta à autonomia universitária, o curso da UnB começou a ser oferecido por mais instituições, a começar pela Unicamp e outras duas universidades federais, do Amazonas e da Bahia. É uma forma de reafirmar que, neste país e sob esta Constituição, nenhum ministro tem de gostar ou desgostar do que se ensina em qualquer universidade. Deixar que isso aconteça equivaleria a dar razão ao que a ementa injustamente diz sobre o governo de Temer — que é um instrumento de “retrocesso nos direitos e restrição às liberdades”.
Publicado em VEJA de 7 de março de 2018, edição nº 2572