A protagonista de Tartarugas até Lá Embaixo (Intrínseca) tem preocupações atípicas para uma adolescente: Aza Holmes sabe tudo de bactérias raras e infecciosas. Aliás, não consegue parar de pensar nelas: é como se sua mente estivesse infectada. O autor da obra, John Green — gigante da literatura para jovens, com 50 milhões de livros vendidos no mundo todo, dos quais 4,5 milhões só no Brasil —, conhece bem esse tipo de hipocondria. Como sua personagem, ele sofre de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Seu quinto romance trata desse drama muito pessoal com a mesma sensibilidade com que A Culpa É das Estrelas, seu maior sucesso, falava de adolescentes que lutam contra o câncer. No meio da turnê promocional que está fazendo, de ônibus, pelos Estados Unidos, Green, de 40 anos, falou a VEJA, por telefone, sobre problemas mentais — e sobre o desafio de comunicar-se com adolescentes. A seguir, sua entrevista.
Aza Holmes, a protagonista de Tartarugas até Lá Embaixo, sofre de distúrbios mentais muito semelhantes aos seus. Foi mais fácil ou mais difícil escrever sobre um distúrbio que o senhor mesmo tem? Foi mais fácil e também mais difícil. Mais fácil porque eu sei muito bem pelo que Aza está passando. Conheço de perto o medo e a opressão de não conseguir controlar os próprios pensamentos. E mais difícil, pois eu me debati a vida inteira para encontrar um modo de falar sobre os problemas do meu cérebro. Ainda criança, eu já lutava para descobrir uma linguagem para expressar isso. No livro, queria pôr o leitor em uma posição na qual ele conseguisse entender e sentir, por dentro, como é o pensamento obsessivo.
Os pensamentos obsessivos da personagem são relacionados a bactérias e infecções. No auge de uma crise, ela chega a beber gel antisséptico. As suas obsessões são parecidas? Sim. Nesse ponto, optei por escrever sobre o que me é familiar. Em uma crise, já bebi gel antisséptico. Não quero romantizar isso: é uma coisa horrível sentir que você tem de fazer algo assim. Foi um dos piores momentos da minha vida. O mais perturbador no pensamento de Aza é que o antisséptico não mata a Clostridium difficile (bactéria pela qual a personagem é obcecada). Aza extrapola o pensamento racional e faz algo que é perigoso para a saúde. O pensamento obsessivo a leva até isso.
A expressão transtorno obsessivo-compulsivo e a sigla TOC não aparecem no romance. Por que o senhor não quis dar um diagnóstico para a personagem? Em parte porque não sou psicólogo e em parte porque muitas vezes não achamos um termo para o que acontece conosco. Um diagnóstico não nos basta: precisamos encontrar descrições mais diretas e pessoais para o que se passa conosco.
O senhor não falava sobre seu distúrbio mental antes. Era um tabu? Ainda é um tema difícil. Comecei a falar a respeito dele porque considero importante que as pessoas ouçam depoimentos de adultos que levam uma vida produtiva sofrendo de problemas mentais crônicos.
Em eventos públicos promocionais de A Culpa É das Estrelas, alguns jovens da plateia que tiveram câncer davam depoimentos sobre o que o livro significou para eles. Está ocorrendo algo similar na turnê de lançamento de Tartarugas até Lá Embaixo? Sim. Tem sido muito comovente ouvir pessoas que tiveram problemas mentais contar como se sentem compreendidas. Algumas têm usado o livro como um modo de conversar com os pais sobre como elas se sentem.
A literatura, então, pode ajudar quem sofre com problemas mentais? A literatura pode nos fazer menos sozinhos, e talvez nos ajude a nos entendermos melhor. Mas não sou a pessoa certa para dizer se meus livros conseguem fazer isso.
É mais difícil falar sobre câncer ou sobre distúrbios mentais? Depende das circunstâncias, e não gostaria de comparar. O câncer, mesmo quando curável, é uma doença séria. E um diagnóstico de doença mental crônica é assustador, pois se trata de algo com que você terá de conviver pela vida toda. Ainda hoje, isso me assusta.
O senhor hoje é um best-seller internacional, tem um canal de sucesso no YouTube e constituiu uma família. Mesmo assim o TOC ainda o assusta? Tenho uma vida boa, sim. Mas ainda luto com a doença. Isso faz parte da minha vida. É um desafio, e é frustrante, pois eu queria apenas não ter esse problema. Escrever o livro não me curou, claro, mas ajudou. Consegui sentir uma compaixão por Aza que eu não me permitia sentir por mim mesmo.
Seja como escritor, seja como comunicador, em vídeos no YouTube, o senhor consegue a atenção do público adolescente. Qual o segredo? O segredo é ouvir os adolescentes e acreditar na inteligência deles. É preciso entender que, mesmo que eles não se comuniquem de um modo que os adultos considerem, digamos, sofisticado, isso não quer dizer que o pensamento deles não seja sofisticado.
Alguns críticos, aliás, dizem que seus personagens adolescentes se expressam com uma articulação que não é realista. Pois é… Quando escrevo, tento retratar o modo como ouvimos a nós mesmos, não o modo exato como falamos. Você provavelmente já transcreveu várias entrevistas na vida e sabe que nem sempre falamos com frases completas e coerentes. O diálogo, na literatura, nunca é realista. Não me interessa refletir a realidade do som que emitimos, e sim a realidade da experiência de uma conversa. Mas admito que essa é uma crítica legítima à minha obra: realmente, não escrevo do modo como as pessoas falam. Nem estou tentando fazer isso.
Se essa é uma crítica legítima ao seu trabalho, o que seria uma crítica ilegítima? Não concordo quando dizem que os adolescentes nos meus romances são mais inteligentes que os adolescentes da vida real. Não é verdade.
Há muito pessimismo sobre o futuro da leitura e, em especial, sobre jovens leitores. O senhor é mais otimista? Não leitores sempre foram mais numerosos que os leitores apaixonados. Mas há muitos jovens lendo. Eles leem muita coisa no celular, mas também livros — e não só os meus. Com frequência, recebo boas recomendações de leitura de adolescentes.
A leitura é especialmente importante na adolescência? Sim, pois os adolescentes estão formando seus valores, estão encontrando as ideias que vão guiá-los pelo resto da vida.
Seus filhos hoje têm 4 e 7 anos. O senhor está pronto para, daqui a um tempo, ter adolescentes em casa? Não, de jeito nenhum! Estou apavorado. Tenho certeza de que vou passar por essa fase, como todo pai passa. Mas sei que é um período tenso, tanto para os pais quanto para os filhos.
No canal de vídeo que o senhor e seu irmão Hank Green mantêm no YouTube, vocês discutem temas políticos do momento. Um vídeo recente fala das suspeitas de envolvimento russo na campanha de Donald Trump. Como abordar esses temas dirigindo-se a um público jovem? Sempre parto da premissa de que os jovens que veem o nosso vlog são sofisticados e inteligentes. Pesquiso com cuidado os fatos que apresento, e faço questão de indicar minhas fontes, para que eles mesmos possam lê-las. Aliás, espero que ainda exista a crença em fatos objetivos nos Estados Unidos.
O senhor procura ser equilibrado com esses fatos objetivos, e não usa adjetivos para qualificar o presidente, por exemplo. Eu me esforço muito para isso: para não demonstrar desprezo, por mais que eu discorde do presidente essencialmente em tudo. Trump é um líder ruim e um presidente ineficiente, e eu queria mesmo que ele não fosse o presidente. Mas eu não o torno menos legítimo com adjetivos. Nenhum apoiador de Trump será dissuadido só com xingamentos. O que, espero, pode mudar a visão deles é a demonstração de que este é um presidente cujo comportamento não dignifica o cargo para o qual foi eleito. Aliás, espero que meus amigos republicanos tenham a mesma conversa comigo se um dia o presidente for um progressista com um perfil similar, ideológico e populista.
As redes sociais deixaram o debate político mais tóxico? Sim. Todo mundo está sempre zangado e gritando, e ninguém gosta quando gritam de volta. É um problema cuja solução eu não consigo enxergar. Mas acredito que cada um de nós precisa moderar o modo como se manifesta on-line.
Sua comunidade de fãs na internet é mais moderada? Temos conversas boas e produtivas, mas o caráter tóxico da internet se imiscui em qualquer lugar hoje em dia. É inerente às redes sociais, e não somos exceção. Não posso fazer de conta que a nossa comunidade é algum tipo de utopia, porque não é.
Seu romance de estreia, Quem É Você, Alasca?, já esteve entre os livros que receberam mais requisições de banimento em bibliotecas públicas. Por que ainda se pede para proibir livros em bibliotecas em um país com a tradição de liberdade de expressão dos Estados Unidos? Bem, nosso país é obcecado com sexualidade. Um livro ou obra de arte que tenha qualquer conteúdo sexual se torna alvo de pessoas que não querem que o sexo faça parte de nenhuma discussão pública. Mas há outros fatores. As pessoas acham que deveriam controlar o que está disponível nas bibliotecas públicas. Discordo: essa deve ser uma decisão dos bibliotecários.
Parte do enredo de Tartarugas até Lá Embaixo tem a ver com um episódio fictício de corrupção em contratos públicos com empreiteiras. É um caso municipal, em Indianápolis, mas lembra o que acontece no Brasil hoje. O senhor acompanha a política brasileira? Sim, sigo as notícias do Brasil. Corrupção envolvendo empreiteiras é algo que acontece no mundo todo. Aqui nos Estados Unidos, acabamos de saber sobre uma pequena empresa, com apenas dois funcionários, que foi contratada por 300 milhões de dólares para reconstruir a infraestrutura elétrica de Porto Rico (destruída pelo furacão Maria). Não era de jeito nenhum a empresa mais qualificada para esse trabalho! Obviamente, no Brasil, onde a corrupção está em praticamente todas as instâncias do governo, esse é um desafio bem maior. Mas este pode ser um momento definidor para o país. Não é o primeiro escândalo de corrupção no Brasil. Vamos esperar que seja o último.
Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2017, edição nº 2555