Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Continua após publicidade

Na cela com o japonês

Livro revela histórias pitorescas que o agente Newton Ishii viu e ouviu na cadeia por onde passaram os presos mais famosos do Brasil

Por Marcelo Rocha Atualizado em 4 jun 2024, 16h38 - Publicado em 6 jul 2018, 06h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Na cela com o japonês
    POR DENTRO DA CARCERAGEM – No livro, o agente reconstitui conversas que teve com os personagens principais do maior escândalo de corrupção do país (//Divulgação)

    O ex-ministro José Dirceu não escondeu a mágoa de ter sido passado para trás pelo presidente Lula. O ex­-deputado Eduardo Cunha tinha medo de ser executado e confidenciou segredos que nem seus advogados conhecem até hoje. O bilionário Marcelo Odebrecht, que fazia 3 000 flexões por dia, queixava-se de ter sido escravizado pela corrupção. E o ex-ministro Antonio Palocci, depois que decidiu contar o que sabia sobre as trapaças do seu partido, teme pela segurança de sua família. Nos últimos tempos, a Superintendência da Polícia Federal do Paraná abrigou — e ainda abriga — os criminosos mais famosos do Brasil. Na solidão de uma cela, falar com alguém em particular ou ser ouvido em um momento de angústia pode fazer a diferença, em alguns casos, até entre a vida e a morte. Foi nesse ambiente que o agente Newton Ishii virou uma personalidade.

    O Japonês da Federal, como ficou conhecido ao aparecer na TV conduzindo os presos da Lava-­Jato, chefiou a carceragem da PF em Curitiba. Em cada nova fase da operação — e foram mais de cinquenta —, lá estava o policial grisalho atrás de um par de óculos escuros ciceroneando as celebridades. Foram mais de 200. A cena virou símbolo. O Japonês virou memes e foi tema de marchinha de Carnaval. Aposentado há quatro meses, escreveu O Carcereiro (272 páginas; Editora Rocco; em parceria com o jornalista Luís Humberto Carrijo), em que relata histórias pitorescas. “Seu Newton”, como os presos chamavam o policial, foi um observador e ouvinte privilegiado. Eis alguns exemplos dessas narrativas.


    O PT ACABOU

    Na cela com o japonês
    HERÓI – Dirceu: o petista disse que está preparado para morrer na prisão (Vagner Rosário/VEJA)

    O ex-ministro José Dirceu é o “preso que todo carcereiro gostaria de ter”, devido à sua disciplina. No livro, Ishii conta que, assim que chegou à prisão, o ex-ministro lhe fez uma confidência. “Morrer na cadeia é para mim algo natural”, disse. Seria o ato final do autossacrifício a que se submeteu desde que a Lava-Jato descobriu sua empresa de consultoria, criada para receber propina. Ishii e Dirceu tiveram um diálogo revelador:

    — Poxa, Zé Dirceu, era para você ter sido nosso presidente! E te vejo aqui?

    Continua após a publicidade

    — Eu nunca fui o escolhido do Lula — respondeu o ex-ministro.
    — Quero dizer que, caso não tivesse havido o mensalão, seria você, não a Dilma, o sucessor do Lula — insistiu o Japonês.
    — Você não entendeu. A mesa estava posta para o Palocci. Mas tanto eu como ele fomos atropelados pelos acontecimentos.

    O ex-ministro tinha medo de ser envenenado na cadeia. Nos primeiros dias de prisão, ele se recusou a tomar seu remédio para hipertensão. Motivo: receava ser dopado e interrogado. Ele aceitou o medicamento seis dias depois, ainda assim apenas quando os agentes concordaram em entregar as cápsulas “dentro de uma caixa lacrada”. Certa vez, Ishii arriscou uma pergunta: “E o PT?”. Dirceu não hesitou: “O PT acabou”.


    DELAÇÃO E AMEAÇAS

    DESESPERO - Antonio Palocci: familiares ameaçados
    DESESPERO – Antonio Palocci: familiares ameaçados (Vagner Rosário/VEJA)
    Continua após a publicidade

    Para o Japonês da Federal, existem dois grupos de bandidos na Lava-Jato: os que deixaram de lado a dissimulação e os que tentam lustrar seus crimes com verniz de nobreza. O ex­-ministro Antonio Palocci está no primeiro deles. Detido há dois anos, adaptou-se à rotina da prisão e, sempre tranquilo, ajuda os colegas, inclusive dando assistência médica. Palocci foi o primeiro a oferecer apoio ao ex-p­residente da Câmara Eduardo Cunha, quando o emedebista aportou na carceragem em Curitiba. “Fique tranquilo. Tudo vai dar certo”, disse.

    Cunha estava em pânico. A esperança de Palocci, entretanto, foi desmoronando a cada recurso rejeitado, até a condenação a doze anos de prisão em um dos processos. Ishii conta que o ex-ministro chegou à exaustão e viu na delação a única saída. Palocci se comprometeu a revelar informações que complicam ainda mais o ex-­presidente Lula, dirigentes do PT e empresários para os quais prestou serviços. Desde que o ex-ministro ventilou a possibilidade de revelar os segredos dos ex-companheiros, sua família começou a receber ameaças. Ele pediu a Newton Ishii que indicasse pessoas que pudessem fazer a segurança de sua esposa em São Paulo.


    O ESCRAVO DA CORRUPÇÃO

    Na cela com o japonês
    BANDIDO, EU? – Marcelo Odebrecht: a corrupção escraviza (Gisele Pimenta/Frame/Folhapress)

    Pelas celas da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba passaram criminosos de todos os tipos: doleiros, traficantes, contrabandistas. Alguém como Marcelo Odebrecht era a primeira vez. Dono de um império, o empreiteiro chegou à carceragem em junho de 2015. Chamou logo atenção pela “empáfia” e pelo “atrevimento”. No início, isolou-se dos demais.

    Continua após a publicidade

    Dormia cedo, acordava cedo e praticava cinco horas ininterruptas de exercícios físicos (fazia 3 000 flexões de braços, usava galões de água como alteres, corria duas horas no banho de sol e utilizava um aparelho que permitia simular a subida equivalente a 800 metros de escada). Obcecado por limpeza, o empreiteiro tentava preservar ao máximo seus familiares. Um dia, sua esposa, Isabela, foi visitá­-lo. Ele estava inquieto, olhando a todo momento para os lados:
    — Chegou um bandido aí — disse à mulher, explicando o motivo da preocupação.
    — E você, o que é? — rebateu ela.
    — Estou falando de bandido perigoso, traficante, assassino — respondeu, irritado.

    O empreiteiro tornou-se mais “sociável” somente depois que tomou a decisão de delatar. Parece ter tirado um peso das costas — ele está em prisão domiciliar desde dezembro. Marcelo afirmou que se sentia escravizado à corrupção, reconhecendo no entanto que se submetia a ela sem nenhum pudor: “De maneira geral, eu, infelizmente, achava normal a forma como a Odebrecht tratava os negócios”. E ainda acrescentou: “Todo mundo que está no jogo precisa encarar a situação do pagamento de gratificações a políticos. Está arraigado à cultura”.

    Continua após a publicidade

    A TERRA VAI TREMER

    Na cela com o japonês
    O MENTIROSO – Eduardo Cunha: medo de ser executado (Heuler Andrey/AFP)

    A inquietação nos olhos do ex-deputado Eduardo Cunha revelava o pavor que sentiu quando chegou à carceragem da PF. Estava carregando a roupa de cama nas mãos. No caminho, ficou paralisado, olhando para os lados. Dois criminosos comuns que estavam na mesma ala despertaram a atenção do homem que era considerado o político mais poderoso do país. “Aquela noite, ele não dormiu. Era o medo de ser assassinado.” O ex­-deputado — classificado por Ishii como “inteligente” e “muito mentiroso” — superou rapidamente a situação. Um dia depois, já dizia a todos que sua condição era passageira, uma anomalia que seria rapidamente superada. Apostou que seria libertado em três dias. Não foi. Refez a previsão para uma semana. Também não deu. Por último, esticou para quinze dias. “Se prepare para três anos”, ponderou o já experimentado Palocci. Ishii conta que ouviu muitos segredos do ex-deputado, embora não revele nada sobre eles. Depois de dois meses na PF, Cunha foi transferido para o Complexo Médico-Penal de Pinhais. Condenado a quinze anos de prisão, queixou-se de que a mudança era uma retaliação dos responsáveis pela Lava­-Jato: “Querem me forçar a fazer delação?”. Se isso acontecer, garante Ishii, a terra vai tremer: “Se ele abrir a boca, será uma desgraceira, ele sabe mais que o Odebrecht. O Cunha arrebenta com tudo”.


    PENSAMENTOS SUICIDAS

    Na cela com o japonês
    PROPINA? – Renato Duque: “spreads”, delação e suicídio (Márcia Foletto/Agência O Globo)
    Continua após a publicidade

    O ex-diretor de Serviços da Petrobras Renato Duque está na categoria dos corruptos ainda em fase de negação. Para ele, propina é spread. “Esse dinheiro era meu, não tirei de ninguém. Era spread que as empresas tiravam do seu próprio lucro pra poder nos pagar”, disse, segundo o livro. Duque recebeu 90 milhões de reais em “spreads” na Suíça — dinheiro que, garante, nem chegou a usufruir. “Era uma poupança para o futuro.” O ex-­diretor, que negocia um acordo de delação, diz que as provas de que levava uma vida de luxo nunca foram encontradas porque não existem: “O máximo que eles levaram para averiguação foram dezesseis canetas de uma coleção Mont Blanc, que não valiam nem 50 000 reais”. Ishii conta que, desesperado e sem perspectiva, Duque avisou que tiraria a própria vida. O policial o demoveu da ideia.


    NEYMAR QUE SE CUIDE

    Na cela com o japonês
    O MICTÓRIO – Nestor Cerveró: confusão urinária com João Vaccari (Geraldo Bubniak/AGB/Estadão Conteúdo)

    Newton Ishii narra ainda duas histórias que mostram a relação de camaradagem e momentos de descontração entre os presos. A primeira aconteceu na cela do doleiro Alberto Youssef, onde havia uma TV posicionada de modo que todos pudessem olhá-la. De repente, no meio da noite, alguém gritou: “Olha os seios da Bruna Marquezine!”. O ex-deputado Pedro Corrêa, de 70 anos, diabético, com insuficiência renal e com problemas graves na coluna, acordou, saltou da cama com vitalidade atlética, mas perdeu o equilíbrio e se estatelou no chão. Condenado a 29 anos de prisão por corrupção, Corrêa, que hoje cumpre prisão domiciliar, virou o “fura-olho do Neymar”. A segunda história é sobre o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, “um sujeito irrecuperável”. Numa madrugada fria de Curitiba, ele acordou, levantou-se e, ainda sonolento e com a visão obstruída pela escuridão, foi até onde acreditava ser o mictório da cela. João Vaccari Neto, o notório tesoureiro do PT, acordou espavorido — e todo molhado.

    Publicado em VEJA de 11 de julho de 2018, edição nº 2590

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Black Friday

    A melhor notícia da Black Friday

    BLACK
    FRIDAY

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de 5,99/mês*

    ou
    BLACK
    FRIDAY
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

    a partir de 39,96/mês

    ou

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.