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Na contramão da História

A explosão de ódio na pacata Charlottesville serve para lembrar que o racismo tem virado moeda corrente mundo afora — no Brasil, estamos andando para trás

Por Lilia Moritz Schwarcz*
Atualizado em 19 ago 2017, 06h00 - Publicado em 19 ago 2017, 06h00

Teve forma e jeito de pesadelo a mais recente manifestação de ódio racial que estourou nos EUA, em Charlottesville, pacata cidade de 45 000 habitantes na Virgínia. Um evento como esse nada tem de circunstancial; lembra uma ferida aberta, além de ressoar um outro conflito ocorrido em 2015, na Carolina do Sul, quando novamente a intolerância venceu a boa utopia da igualdade de direitos.

Também não há coincidência nos locais em que ocorreram tais episódios. Ambos permitem recordar, por caminhos pouco tortos, o contexto em que terminou a sangrenta Guerra Civil (1861-1865), que deu vitória aos estados do Norte sobre os confederados do Sul do país. A derrota foi grave: levou à imposição de um modelo de vida, a uma nova maneira de lidar com a economia e fazer política, ao fim da supremacia dos grandes senhores agrários e à aboli­ção da escravidão, que, naquela época, se assemelhava a um “destino incontornável”. Não era! Nenhum sistema que supõe a posse de um homem por outro, mesmo que respaldado pela lei, pode evitar de ser violento ou se perpetuar sem que a Justiça corrija sua perversão essencial.

Terminada a guerra, procurou-se por um equilíbrio interno complicado de lograr. Até nos dias de hoje, quem viaja para o Sul dos EUA não raro vê uma bandeira confederada no mastro das casas, ou estranha manifestações de sulistas que ainda comemoram seus heróis, escamoteiam derrotas e desfazem da vitória alheia. Sobra ressentimento acumulado, com o passado se inscrevendo no presente.

História é ruptura, mas, nesse caso, o que existe é continuidade. Basta lembrar que, mal terminados os dias da escravidão, novas medidas de apartheid escancararam a fissura no coração do país. A segregação racial ocorria, agora, em instalações públicas e privadas, nos serviços, nas oportunidades sociais, e atingia em cheio as populações afro-americanas. Escolas, bancos de ônibus, bares, igrejas, aí estava uma lista longa que impunha a separação entre pessoas que nasceram iguais e cujas potencialidades são idênticas. As leis Jim Crow, vigentes de 1876 a 1965, institucionalizaram o racismo, abusando de frágeis critérios biológicos que determinavam a superioridade branca. E, onde não vigia a discriminação “legalizada”, grupos sulistas davam jeito de promovê-la na base da violência covarde. Basta evocar associações, como a Ku Klux Klan, que realizavam atentados e linchamentos públicos à luz do dia e sem nenhum embaraço.

O pós-abolição americano foi longo e procurou perpetuar o que a sociedade não conseguia resolver. Ainda no fim do século XIX tomou força a teoria do separate but equal  (separados mas iguais), quando se introduziram novas apartações, entre elas as leis que proibiam casamentos inter-raciais. Apenas depois da II Guerra Mundial extinguiu-se a separação entre negros e brancos nas Forças Armadas. A segregação de jure terminou por meio de uma ação federal de 1954, que declarou inconstitucional a discriminação nas escolas. O Congresso aprovou as leis dos direitos civis em 1964 e a do direito do voto em 1965. Essa é mesmo uma história recente e de memória curta.

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O caminho nem sempre foi progressivo. Outros atos já haviam sido promovidos pelas próprias populações atingidas. Rosa Parks, uma afrodescendente que vivia no ultrarracista Alabama, tomou um ônibus e “ousou” sentar-se num lugar reservado aos brancos. Acabou presa por desobedecer ao código civil da cidade, mas provocou uma revolta que tomou o país. Começava aí uma história de lutas por direitos civis, com o surgimento de figuras formidáveis como Martin Luther King, que advogava pacificamente pela igualdade, e Malcom X, que, com seus panteras negras, ajuizava que violência só se resolve com mais violência.

É preciso, pois, levar a sério os termos da disputa que girou em torno de uma simples estátua. Estava em questão homenagear — ou retirar a homenagem de ­— um personagem famoso da história local: Robert E. Lee (1807-1870), líder do outrora poderoso Exército Confederado. Ocupando cada um dos lados estão dois grupos apartados: para os extremistas de direita, Lee é o símbolo maior do poder branco. O general teria o dom de evocar um tempo mítico, quando os sulistas não se julgavam “usurpados” por negros, judeus, gays e imigrantes. De outro lado, grupos antirracistas, como o Black Lives Matter, reivindicam que direitos adquiridos são direitos conquistados.

Está também em disputa o próprio significado de movimentos como esses. Para alguns, observar as ruas de Charlottesville tomadas por símbolos da Alemanha nazista e bandeiras da Secessão, acompanhar gestos fascistas e ver os uniformes da KKK sair da naftalina são atos lamentáveis de intolerância racial. Mas há ainda os adeptos da Frente Nacionalista, grupo neonazista, que aplaudiu o ato e viu nele “uma esperança”. Falta incluir os militantes de extrema esquerda, os “antifas” (antifascistas), que avaliam o recurso à violência como uma resposta necessária.

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No entanto, polarizações e ódios raciais não são privilégios da história americana. O país não detém o monopólio da tendência mais geral que vem derrubando direitos que considerávamos consolidados. O racismo tem virado moeda corrente pelo mundo afora e não lembra cantiga de ninar.

Comparações são sempre falaciosas, mas vale a pena mencionar o caso do Brasil, que, se jamais contou com medidas de apartheid na sua Constituição, passou para a história como o último país a abolir a escravidão no Ocidente, além de ter recebido mais de 45% dos africanos que saíram forçadamente de seu continente. Nos EUA, como aqui, a escravidão se naturalizou e criou uma sociedade violenta, de hierarquias arraigadas e que não precisa da lei para praticar um racismo estrutural.

Existe, porém, uma diferença temporal importante. Comparado aos EUA, o Brasil é novato na aplicação de políticas de ação afirmativa — esse expediente que busca por meio da intervenção no mercado ou de incentivos nos setores públicos e privados atuar sobre a desigualdade social. Por lá, o termo apareceu já nos tempos de John F. Kennedy. Por aqui, ainda nos anos 1970 a questão era estranha à agenda nacional. Mesmo assim, com a redemocratização, o ritmo se mostrou ascendente: em 1978 é fundado o Movimento Negro Unificado; na década de 80 é criada a Fundação Palmares e implementada a Lei Caó. Em 2001, sob a presidência de FHC, definiu-se um programa de cotas nos ministérios da Agricultura, da Reforma Agrária, da Justiça, das Relações Exteriores. No mesmo ano, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro destinou 40% das vagas das universidades estaduais a pretos e pardos. Foi, entretanto, durante os governos do PT que essa política recebeu empuxo mais coerente. Em 2004, por exemplo, foi introduzida a disciplina história e cultura afro-brasileira e africana, que tinha o propósito de incluir outros povos no currículo de nossas escolas.

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De lá para cá, muita água correu e levou à composição de pelo menos dois grupos: enquanto os defensores das ações afirmativas acreditam ver nelas um remédio para aplainar desigualdades historicamente constituídas,  seus adversários as entendem como um recurso que só acumula tensões e aumenta as diferenças.

Não existe receita pronta ou conselho que venha de graça. No entanto, esse percurso comparativo quem sabe ajude a refletir sobre impasses atuais da nossa República. Afinal, o Brasil é campeão em desigualdade social, pratica atos cotidianos de racismo, revela-se machista na sua hierarquia e homofóbico no seu dia a dia.

O pior é que temos andado na contramão. Numa nação em que as mulheres são 51,4% da população e negros correspondiam, em 2014, a 53,6%, o governo Temer submeteu pastas independentes, como a das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, ao Ministério da Justiça. Foram retirados espaços fundamentais de nossa experiência cidadã, que correspondem aos movimentos LGBTs, feministas, negros, indígenas, quilombolas. Com isso perdemos nós, brasileiros, assistindo ao retraimento das políticas que visam à expressão da pluralidade.

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A experiência diz que mais diferença é sempre mais. Se há uma forma de combater o ódio racial, é diminuindo a desigualdade, promovendo a integração e transformando a educação numa prática democrática e para todos. Ações afirmativas não são políticas “contra”; são “a favor” da autoestima, objetivam incluir e garantir uma cidadania mais plena. São medidas que procuram trazer igualdade para populações que sistematicamente viveram na desigualdade. Procuram mais: mostrar a beleza do convívio com a diversidade. Como poetou Carlos Drummond de Andrade:  “Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar”. E é nesse mundo de diferenças, mas também cada vez mais dividido, que nos é dado viver.

*Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do departamento de antropologia da USP e global scholar em Princeton. Acaba de publicar Lima Barreto: Triste Visionário

Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2017, edição nº 2544

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