Não desistirei de vocês
Mariana Alves, 35 anos, a diretora de cursinho no Rio cujos alunos perderam o vestibular para a violência
“Acordei com a mensagem de uma aluna apitando em meu celular. Era sucinta, mas dizia tudo: ‘A Rocinha está em guerra. Bandido contra bandido. Estudamos para nada’. Aquela jovem havia se esforçado meses e meses com determinação comovente, e justamente no dia do vestibular, aguardado com tanta ansiedade, o morro explodiu em violência. A saraivada de tiros de fuzil espalhou terror, perfurou carros e casas, ceifou vidas e interrompeu o sonho dos meus estudantes, que ficaram trancados em casa, imóveis, sem poder comparecer à prova. Pensavam agora só na sobrevivência.
Como diretora do cursinho pré-vestibular que recebe gratuitamente os alunos da Rocinha, vizinho à favela na Zona Sul do Rio de Janeiro, sou testemunha do inferno que esses jovens vivem para tentar romper o ciclo da pobreza e da brutalidade. Um era traficante, perdeu um amigo no crime e agora estuda para ser diplomata. Eles têm a ambição, mas lhes falta o básico: com a escalada da violência, perderam a liberdade de ir e vir. Às vezes, os bandidos ditam o toque de recolher — todo mundo corre para casa, sem dar um pio. Eles andam fortemente armados, donos do pedaço. Quando se sentem ameaçados em seu território, abordam o suspeito. Aconteceu com um aluno. Ele voltava do cursinho e, de repente, viu-se na mira de um revólver contra o queixo. Assim mesmo, do nada. Foi liberado depois de o marginal entender que ele não era inimigo. Era só um estudante.
Ambicionar a universidade em um ambiente como esse é muito mais do que enfrentar uma pesada rotina de estudos; é enfrentar bandido e polícia ao mesmo tempo a caminho da sala de aula. Meus estudantes são parados na rua por PMs que questionam de que lado da guerra estão. A todo momento eles precisam provar que são pessoas do bem. Mostram documentos, o uniforme da escola, o que tiverem à mão. Muitos faltam à aula. Preocupados, os pais suplicam que fiquem em casa. A taxa de abandono no cursinho é ainda enorme — neste ano, quinze dos sessenta matriculados já se foram. Os que persistem ainda precisam ouvir: tem certeza de que esse negócio de faculdade é para você?
Depois de a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) se instalar no morro, em 2012, houve esperança, mas naquele domingo 17, em que meus alunos ficaram entocados em casa, ela tinha se dissipado por completo. Três mil estudantes da favela estão sem aula, incluindo os do cursinho — às portas do Enem, por tempo indeterminado. Não tenho certeza de quantos afinal conseguiram vencer a barreira de bandidos para prestar o vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que aconteceu no fatídico dia em que a guerra explodiu. Como as linhas de transmissão foram atingidas, a comunicação ficou comprometida. O cenário era de terra arrasada no sombrio dia seguinte: corpos esquartejados e carbonizados no meio da rua, mais tiro, mais toque de recolher, mais medo, e a polícia sem saber o que fazer.
Na véspera do tiroteio, estavam todos na aula de literatura às voltas com A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, leitura obrigatória para a prova que acabariam não fazendo. A famosa frase ‘É tempo de morangos’, extraída da obra, contagiou a turma. É tempo de oportunidades, pensaram. Estavam verdadeiramente entusiasmados, cientes de que tinham diante de si a chance de começar a traçar um caminho diferente. Aquela mensagem que pipocou no meu celular logo pela manhã, seguida de tantas outras com imagens aterrorizantes da área conflagrada, me tomou de um sentimento de impotência. O texto de minha aluna encerrava-se com uma única palavra cortante: ‘Chorei’. Ela, eu e todos os professores. Aliás, é ótima aluna e quer ser advogada. Sei que terá sua oportunidade. De meu lado, fica um pedido a esses jovens sobreviventes da guerra: não desistam da universidade. Eu certamente não desistirei de vocês.”
Depoimento a Luisa Bustamante
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549