Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana

No tumulto da criação

Estranho, atormentado e também formidável: em 'Mãe!', o diretor Darren Aronofsky ancora na estupenda atuação de Jennifer Lawrence uma alegoria do Gênesis

Por Isabela Boscov Atualizado em 22 set 2017, 06h00 - Publicado em 22 set 2017, 06h00

Se, na sua espiral obsessiva em busca da perfeição, a personagem bailarina de Natalie Portman em Cisne Negro consumia-se física e mentalmente até tornar-se quase etérea, em Mãe! (Mother!, Estados Unidos, 2017) a presença terrena e sólida de Jennifer Lawrence contrasta com o torvelinho que as obsessões alheias vão instaurando à sua volta: hiperbólico (como sempre), estranho (para dizer o mínimo) e também formidável, goste-se ou não dele, o novo filme do cineasta americano Darren Aronofsky, do já citado Cisne Negro, de O Lutador e de Noé, é feito para tragar o espectador com a coesão indivisível de sua tessitura, e com a combustibilidade crescente de sua narrativa. Mãe!, que já está em cartaz no país, dividiu o público no Festival de Toronto, há alguns dias, e deve continuar a fazê-lo. Talvez seja essa, aliás, a maior de suas qualidades, como de resto em toda a obra de Aronofsky: a intransigência com que ele persegue sua visão e mergulha nela a plateia.

Mãe (Jennifer, numa atuação extraordinária) é a jovem mulher de um poeta mais velho, Ele (Javier Bardem). Mãe constrói diligentemente o lar dos dois: a casa no meio de um prado cercado de árvores, para a qual não há acesso perceptível, a certa altura se perdeu num incêndio, e foi Mãe quem a devolveu à vida, viga por viga. Às vezes, quando encosta o rosto em uma das paredes, ela sente a casa pulsar. Ele, porém, está em bloqueio criativo. Sua impaciência e distância são um desafio para Mãe — e tornam-se um enigma quando um desconhecido, Homem (Ed Harris), bate à porta, e Ele o convida a ficar. Espiando por uma porta, Mãe vê um talho nas costas do intruso. No dia seguinte, quem toca a campainha é Mulher (Michelle Pfeiffer, magistral), a esposa que não se sabia que Homem tinha. Espaçoso e voluntarioso, o casal age como se a casa fosse sua. Ele ignora os protestos tímidos de Mãe contra a invasão: está inebriado com a admiração que os estranhos lhe dedicam. Chegam os dois filhos do casal (os irmãos Domhnall e Brian Gleeson), e uma tragédia acontece. Nessa mesma noite, Ele afinal escreve um poema e engravida Mãe, deflagrando eventos cada vez mais intensos: multidões tentando entrar na casa, festas de um abandono apocalíptico, guerras — e, na culminação do tumulto, um horrível ritual canibalístico no momento em que Mãe dá à luz seu filho.

Alegorias bíblicas e inquirições sobre a natureza da fé ou do sentido religioso são constantes no trabalho de Aronofsky. Mãe!, entretanto, leva-as a um novo extremo. O diretor diz ter escrito o roteiro com urgência, em uns poucos dias nos quais o repente de indignação com a destruição do planeta logo tomou a forma de uma paráfrase do Gênesis — do paraíso que Mãe está moldando para Deus à chegada de Adão e Eva, à tentação do fruto proibido (um cristal que sobrou do incêndio da casa, que Ele guarda com ciúme) e à queda do homem, avançando pelo nascimento de Cristo e pela literalidade com que seu sangue e sua carne são consumidos. A depender da bagagem que o espectador carrega consigo para a sala de cinema, Mãe! pode adquirir muitos outros sentidos ainda — ou talvez nenhum, já que a rejeição é também uma das reações possíveis ao filme. Entre elas, só não se inclui a indiferença.

Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549

Publicidade

Imagem do bloco

4 Colunas 2 Conteúdo para assinantes

Vejinhas Conteúdo para assinantes

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.