Cinco da tarde da quarta-feira 4 de abril. A dona de casa Eleanor Cruz de Lima, de 53 anos, deixa o Hospital Municipal Pedro II, em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde acabara de visitar o pai, internado havia quase duas semanas, e vai pegar o ônibus para casa, no bairro vizinho de Guaratiba. Ela vinha fazendo o mesmo percurso todos os dias desde que Edison Lima, de 80 anos, dera entrada no hospital com dores no peito depois de um tombo de bicicleta. Ele estava sedado e intubado e precisava de uma cirurgia que o Pedro II não tinha condições de realizar. Sua vida dependia da transferência, urgente, para a Unidade de Tratamento Intensivo de um hospital especializado. Não deu tempo. O pai de Eleanor morreu quatro dias depois, no mesmo leito número 19 em que recebera o atendimento inicial. Entrou, assim, para a escandalosa estatística dos sem-UTI no Rio de Janeiro: a cada dia, três pessoas morrem por falta de um leito na terapia intensiva, segundo relatório da Defensoria Pública do estado.
A média de 1 095 vítimas por ano encosta no total de mortos no Rio pelas armas da polícia (1 127) em 2017. Equivale a dizer que a violência policial mata quase tanto quanto o caos na saúde. Pior: o cálculo é conservador, pois se baseia apenas nos pedidos de ordem judicial para obrigar o poder público a oferecer vaga a doentes em estado crítico. A sentença favorável é a última saída, mas não garante sobrevida: 60% dos que peregrinam até obter um leito acabam morrendo porque esperam além da conta (o prazo médio para arranjar um lugar na UTI esticou de 24 para 72 horas, e pode passar muito disso). “Mesmo quando o paciente é transferido, a demora já agravou seu quadro de maneira irreversível”, explica Thaísa Guerreiro, coordenadora de Saúde e Tutela Coletiva da Defensoria Pública.
A reportagem de VEJA acompanhou duas noites do Plantão Judiciário, instalado no centro da cidade, aonde acorrem os parentes em busca de uma vaga por via judicial. Testemunhou a angústia infinda de parentes cujos familiares estão à beira da morte. Internada após um infarto na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Engenho Novo, na Zona Norte do Rio, Elvira Reis, de 81 anos, passou 35 dias esperando transferência para uma UTI, mesmo com o laudo médico que atestava risco de “morte iminente”. Por circunstâncias alheias à sua vontade, ela entrou em outro rol dramático na saúde pública fluminense: o das UPAs que não podem cumprir sua função porque têm os leitos ocupados por pacientes críticos que custam a ser transferidos. Em 28 de março, Celia, a filha de Elvira, bateu ponto no Plantão Judiciário atrás da ordem judicial. “É horrível ficar esperando vaga sabendo que ela pode morrer a qualquer momento”, disse a VEJA.
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Ela deu sorte: na madrugada seguinte, Elvira foi levada para o Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro. Passadas três semanas, os médicos ainda estão avaliando se, depois de tanta espera, a mãe de Celia tem condições de ser operada. Por um drama parecido passou Vinicius Matheus Couto, de 23 anos, internado na UPA de Bangu, na Zona Oeste do Rio, com dificuldade para respirar. Foi atendido e estabilizado, piorou e teve de ser intubado e sedado. O médico que o acompanhava pediu sua transferência imediata para uma UTI hospitalar. De posse do laudo que alertava que qualquer demora poderia “levar a danos irreparáveis ou mesmo ao óbito”, a mãe de Vinicius, Claudia, obteve duas liminares que determinavam a mudança em 24 horas. A decisão judicial nada valeu. Seu filho só saiu da UPA de Bangu seis dias depois. Morreu no Hospital Federal Cardoso Fontes.
Um levantamento feito pelo Conselho Federal de Medicina sobre a oferta de leitos de UTI nos estados mostra que a rede pública do Rio de Janeiro está entre as dez piores. O ideal é dispor de um a três leitos por 10 000 habitantes — o Rio tem 0,78. Quando se consegue algum avanço, entra em cena a escassez de médicos e enfermeiros. O Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, montou uma UTI com vinte leitos, mas demorou mais de um ano para inaugurá-la, por falta de profissionais. Na raiz do desastre da saúde fluminense está uma velha mazela nacional: a má qualidade da administração pública. “Falta um sistema para aumentar a rotatividade. O tempo ideal de um paciente em UTI é de até oito dias. Na prática, ele fica muito mais”, diz Marcelo Maia, diretor da Associação de Medicina Intensiva Brasileira. Exemplo da vida real: em um hospital estadual de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, três crianças encontram-se internadas na UTI pediátrica há mais de um ano. Repetindo: há mais de um ano. Estão à espera do atendimento em casa, ao qual têm direito, mas o serviço não vem sendo oferecido.
O Estado do Rio dispõe de leitos de UTI em 48 instituições, sendo nove federais, vinte estaduais e dezenove municipais. No âmbito federal, verificou-se um aumento de vagas de 8% no ano passado, de 312 para 338, e ainda assim há problemas de superlotação. O estado diz que o número de leitos das suas unidades intensivas também cresceu, mas contrapõe a isso um salto de 27,7% nas internações só nos três primeiros meses de 2018. A prefeitura, por sua vez, tem hoje os mesmos 735 leitos de UTI que oferecia no começo do ano passado, mas 35 estão “indisponíveis”, por causa de obras. Seja qual for o cálculo apresentado, é evidente que a oferta não está suprindo a demanda.
Na busca de culpados para a defasagem, um dos fatores apontados é ainda mais dramático: a violência urbana desenfreada. Os hospitais sobrecarregados têm de dar conta do atendimento, sempre prioritário, dos feridos por arma de fogo, que só nas emergências municipais e estaduais somaram 4 859 pessoas em 2017, 29% a mais que no ano anterior. Repetindo: 4 859 casos em um ano, o que corresponde a um cidadão baleado a cada duas horas. Paira sobre esse cenário desalentador a crise que fulmina as finanças do Rio. O governador Luiz Fernando Pezão, do MDB, é alvo de investigação no Ministério Público estadual por não estar aplicando no setor os obrigatórios 12% do orçamento, um furo calculado em cerca de 2 bilhões de reais anuais. O prefeito carioca Marcelo Crivella, por sua vez, represou 1,2 bilhão de reais da área desde que assumiu o cargo, em 2017.
Um dos hospitais prejudicados pela tesoura de Crivella é justamente o Pedro II, onde Edison Lima morreu sem conseguir transferência para uma UTI especializada. A ala de tratamento intensivo desse hospital perdeu quinze dos trinta leitos nos últimos meses. Enquanto seu pai esteve lá, Eleanor tirou dinheiro do próprio bolso para comprar paracetamol, remédio contra dor e febre. No fim de março, a Vigilância Sanitária interditou a cozinha por um dia devido às condições inadequadas. Pouco depois, o sistema elétrico entrou em pane e o hospital ficou às escuras, funcionando apenas com luzes de emergência. O Pedro II é gerido por uma organização social (OS), entidade privada que presta serviços ao município. A dívida da prefeitura com as OSs é de 600 milhões de reais; outros 250 milhões estão pendurados com fornecedores.
Plantada na porta do Plantão Judiciário na noite de 28 de março, Juliana Aragão, de 28 anos, reclamava: “É o preço que a gente paga por não poder bancar um plano de saúde”. Ela buscava a transferência da avó, Joana D’Arc, de 72 anos, internada havia dois dias com derrame cerebral no Hospital Municipal Albert Schweitzer, em Realengo, na Zona Oeste do Rio. Com a UTI lotada, Joana ficou intubada em um leito aquém de sua necessidade. A neta então pegou um ônibus e percorreu 40 quilômetros até o Plantão Judiciário, no centro da cidade. Às 2 da madrugada, foi informada de que o laudo médico que apresentara estava incompleto. Refez o trajeto de volta. Ao chegar ao hospital, alívio: a avó acabara de obter a transferência. “O médico me disse que só conseguimos porque ele não tinha colocado a minha avó no sistema.” O tal sistema é uma base de dados montada para conectar pacientes necessitados a leitos disponibilizados. Na prática, quem cai ali demora mais a ser transferido porque, num exemplo intolerável de incompetência administrativa, estado e município têm sistemas que não conversam entre si, embaralhando o mapa.
A celebrada transferência da avó de Juliana, porém, chegou tarde demais. Em 30 de março, às 19h40, ela morreu. A neta voltou à peregrinação — recorreu à Justiça para ter acesso ao serviço funerário gratuito. Conseguiu. Joana D’Arc foi enterrada em uma cova rasa, às 15h30 do domingo de Páscoa. Quinze pessoas acompanharam o féretro. Sobre o pedaço de terra em que foi colocado seu corpo não há lápide nem nome. Apenas uma cruz onde se lê um número: 1 640.
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2018, edição nº 2580