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Silvio de Abreu: O senhor das novelas

O autor diz que os espectadores estão cansados dos desvios morais e lamenta a falta de interesse pela história do país

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 19h16 - Publicado em 13 jul 2017, 12h46

Quando já tinha mais de 70 anos, o paulistano Silvio de Abreu encarou um desafio inédito na carreira. Criador de sucessos como A Próxima Vítima (1995), ele se tornou o primeiro autor de novelas a chefiar a área da Globo devotada ao gênero. Ao virar diretor-geral dos folhetins da emissora, em 2014, sua missão era dura: o cansaço no formato de entretenimento mais popular no país era tão patente que se falava até em risco de extinção. Mas Silvio, hoje aos 74 anos, pôs ordem na casa: revelou dezessete novos autores e agora vê a audiência das cinco faixas de novelas da Globo atingir seu ápice em muito tempo — 66 milhões de pessoas as sintonizam diariamente. Em conversa em sua cobertura, em São Paulo, ele fala a respeito dos reflexos da crise no país sobre o humor do espectador, lamenta a desinformação do brasileiro sobre sua história e repele comparações entre as novelas e as séries americanas.

Na época do mensalão, o senhor lamentava o fato de a má influência dos políticos estar afetando a percepção moral dos espectadores, que passaram a torcer pelos personagens de mau caráter. O público continua tão tolerante? Nos tempos de Lula e companhia, ninguém achava graça nos personagens que se pautavam pela ética. O espectador via o mundo assim: se você faz qualquer coisa para se dar bem na vida e conseguir vencer, que problema há nisso? A novela é mesmo um espelho da sociedade, mas a verdade é que ela não muda a cabeça do público. As pessoas não se tornaram tolerantes com os malfeitos em decorrência do que a novela mostrava, e sim por influência dos exemplos vindos de cima. Essa era a mensagem que o governo estava passando, ao varrer os escândalos para debaixo do tapete. Hoje, o humor do público mudou. As pessoas estão cansadas do mar de lama. Até algum tempo atrás, nossas pesquisas com os espectadores detectavam um mau humor geral: ninguém queria ver tramas pesadas e com muitos personagens negativos, como Babilônia e A Regra do Jogo. Todo mundo ficou com ojeriza ao noticiário e, sobretudo, à vilania nas novelas. “Não quero ver na novela uma continuação do telejornal”, ralhavam. A própria sociedade entendeu que o vale-tudo não é o caminho.

Como as novelas voltaram a agradar? Agora, estamos em outra fase: as pessoas ficam indignadas, mas se consolam ao constatar que pelo menos os vilões estão sendo punidos. Finalmente, a turma do colarinho branco está pagando pelos seus desvios. Isso deu uma nova esperança à sociedade: apesar de vivermos no caos, estamos olhando para cima e vendo as estrelas. A partir do momento em que as novelas sintonizaram com esse sentimento, elas trouxeram conforto e fizeram as pazes com a audiência.

Como isso se dá na prática? O público está procurando maneiras de entender e até rir deste novo momento. O êxito da atual novela das 7 (Pega Pega, que estreou no mês passado) mostra bem isso. A história lida com uma questão ética, mas de um jeito leve e engraçado. Você tem um grupo de pessoas que roubou um hotel. Mas de que adianta elas terem abocanhado tanto dinheiro se não têm como gastá-­lo? Qual é o sentido de tamanha roubalheira, meu Deus do céu? Da mesma forma, os escândalos da Lava-­Jato nos levam a pensar: onde foi parar todo o dinheiro roubado do país? A gente vê as malas de dinheiro e as contas no exterior abastecidas pelo Joesley Batista e se assusta com o volume do negócio. As pessoas têm dificuldade em compreender o que leva alguém a roubar um volume de dinheiro que nunca conseguiria gastar, tirando recursos que serviriam para construir hospitais e escolas.

Mas a Globo não trocou o nome original da novela, Pega Ladrão, para evitar qualquer confusão com a realidade? Não foi a Globo que mudou. Quem quis alterar o nome foi a autora (Claudia Souto). Ela temia que se criasse uma expectativa errada em relação à novela, que se esperasse uma novela-denúncia. Mas nem por isso o público deixa de enxergar uma correspondência entre o roubo do hotel na ficção e a corrupção no país.

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“As pessoas estão cansadas do mar de lama. Todo mundo ficou com ojeriza ao noticiário e à vilania nas novelas. A sociedade entendeu que o vale-tudo não é o caminho”

Foi mesmo preciso fazer ajustes na novela das 6, que fala sobre as peripécias de dom Pedro I, e na das 11, que aborda o período da ditadura militar, porque o público não estava a par de fatos históricos básicos? Sim — e isso me deixou estarrecido. Em uma pesquisa com espectadores sobre a novela das 6, uma senhora deu a medida de como é importante mostrar a história nacional nas novelas. “Eu gosto desse tipo de novela porque é como conhecer um livro sem precisar ler”, disse ela. Mas, na mesma pesquisa, fiquei chocado ao constatar que as pessoas achavam que dom Pedro I havia descoberto o Brasil. Se a novela se chama Novo Mundo e tem caravelas, só podia ser sobre o Descobrimento. Eles nem sequer sabiam que o Brasil havia sido colônia de Portugal. A gente precisou explicar que o Brasil tinha sido descoberto em 1500. Até aí, tudo bem. O nome da novela podia talvez levar à confusão. Só que, quando fizemos uma pesquisa similar sobre Os Dias Eram Assim (a atual novela das 11), percebi que o problema era muito maior.

Por quê? Os participantes não tinham noção do que aconteceu no Brasil na história recente. Os mais jovens ignoram que houve um golpe militar em 1964 e uma ditadura militar. “Ah, só ouvi falar, mas não sabia se era verdade.” Para driblar isso, uma das personagens, que é professora e vítima da ditadura, passou a ensinar à classe o que estava acontecendo no país.

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Qual é a raiz de tanta desinformação? É triste, mas as pessoas não estão aprendendo isso na escola. É impensável as pessoas desconhecerem o que aconteceu na história recente de seu país. Se você não tem o mínimo conhecimento sobre a história da sua gente, simplesmente não faz parte do país.

Antigamente, as pessoas eram mais bem informadas? Sem dúvida. Nas pesquisas que fazíamos nos anos 80 e 90, o nível de conhecimento das pessoas era muito maior. Hoje em dia, o público não entende coisas básicas. É muito difícil. Pior ainda: ninguém está interessado em aprender. No passado, era um valor nobre aprender inglês, história ou matemática. Hoje, quando o negócio aperta, você joga uma palavra no Google e tem uma resposta rápida e superficial para tudo. Para que esquentar a cabeça com essa chatice de se interessar de verdade por um assunto?

Historiadores reclamam da falta de cuidado histórico em Novo Mundo. Num quadro de tanta falta de cultura, a novela não tinha a obrigação de ser mais criteriosa? O autor não é obrigado a dar aulas de história. É ficção, Jesus Cristo! A ficção precisa usar como base a realidade, mas não tem a obrigação de contar a história didaticamente. Ou você acha que aquela história dos Dez Mandamentos mostrada no filme do Cecil B. DeMille é verdadeira? Ou que as peças de Shakespeare oferecem relatos factuais sobre reis e rainhas? Se a pessoa tiver interesse e for atrás do que está sendo exibido no ar, a novela já terá dado uma contribuição imensa.

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“Os espectadores achavam que dom Pedro I havia descoberto o Brasil. Os mais jovens ignoram que houve um golpe militar em 1964. É triste, mas não estão aprendendo isso na escola”

Até que ponto o salto de qualidade das séries americanas está obrigando a novela a se modernizar? É engraçada essa onda de críticas e comparações com as séries: “Ah, novela é ruim, novela é cafona, novela é para o povinho. Boas mesmo são as séries americanas. Elas é que têm uma linguagem moderna”. Houve uma propaganda enorme sobre isso, principalmente para as pessoas da classe A. O fato é que as séries nunca chegaram nem perto de ameaçar o reinado das novelas no país. Na época em que as séries estavam no auge, nós tivemos uma novela de grande sucesso e aclamadíssima por sua qualidade, que foi Avenida Brasil (2012). Para elogiar a novela, inventou-se que ela copiava as séries. Bobagem. O próprio João Emanuel (João Emanuel Carneiro, autor da novela) sabe que a história dele não tinha nada de série em seu DNA. Foi um grande folhetim contado com a maior categoria, com elenco excelente — como deve ser uma boa novela.

Não muito tempo atrás, proclamava-se que as novelas estavam fadadas à extinção. Elas podem morrer um dia? Quando comecei a fazer novela como ator, em 1967, na extinta TV Excelsior, eu pensava: “Ih, esse negócio aqui não vai para a frente; mais uns dois anos, no máximo, e estarei desempregado”. Dez anos depois, resolvi escrever novelas. Muita gente disse: “Mas que bobagem, você vai deixar um troço promissor como o cinema para fazer essa coisa ultrapassada que é novela?”. E lá se vão mais de quarenta anos. Há muito tempo estão anunciando a morte das novelas — e, mais uma vez, elas estão renascendo. Sabe o que garante esse milagre de ver o interesse pelas novelas ressurgir? A renovação. Novas cabeças tendo a chance de escrever, dirigir e atuar nas novelas.

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Em 2015, Babilônia causou choque por mostrar um beijo entre duas lésbicas idosas, enquanto hoje A Força do Querer fala dos transexuais com grande aceitação. Qual é o segredo? Depende de como se aborda o assunto. Se você joga um tema difícil na cara das pessoas, de supetão, elas se assustam. Pensam assim: “Minha família não vai gostar. O que direi aos meus filhos?”. Mas, se você for contando aos pouquinhos, conseguirá chegar aonde quiser. A Gloria (Gloria Perez, autora de A Força do Querer) está contando a história da menina transexual maravilhosamente bem. É uma das personagens mais queridas da novela. E as pessoas dizem assim: “Puxa, essa história é tão boa que vejo como estou errando com meu filho ou minha filha. Estou querendo que eles sejam o que eu quero, e não o que eles desejam ser”.

Em que medida o pensamento politicamente correto afeta as novelas? É muito difícil escrever ficção hoje por isso. Quando escrevi Belíssima (2006), o Reynaldo Gianecchini fazia um mecânico que falava errado — e não é que recebi carta do sindicato dos mecânicos dizendo que ia me processar porque isso pegava mal para a categoria? Gente louca, né? Mas a patrulha aumentou muito de lá para cá. A gente procura contemplar todas as sensibilidades. Só que às vezes as pessoas exageram. É como o negócio do protagonista japonês de Sol Nascente (novela das 6 exibida em 2016). Fizemos muitos testes, mas não encontramos nenhum ator japonês com condição de fazer a novela. Aí pegaram no pé por colocarmos o Luis Melo no papel. Antes também se falava: “As novelas não têm negros”. Mas foi só surgirem mais atores negros interessantes que as novelas ficaram cheias de personagens negros.

Por que até os melhores autores tropeçam? Quando você acredita no sucesso, é um perigo. Você não pode se encantar consigo mesmo, é uma coisa traiçoeira. Tive a sorte de quebrar a cara logo na primeira novela que fiz na Globo, Pecado Rasgado (1978). Eu vinha de um sucesso na Tupi e fui para a Globo me achando a última bolacha do pacote. Aí fiz a novela e foi um fiasco. A verdade é que escrever uma novela sozinho não é tarefa simples, e eu ainda não tinha know-how.

Publicado em VEJA de 19 de julho de 2017, edição nº 2539

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