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O ultraje final

Um dos mais vigorosos escritores americanos, Philip Roth, morto aos 85 anos, tratou do sexo com liberdade escandalosa e da morte com melancólico desassombro

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h10 - Publicado em 25 Maio 2018, 06h00
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    (VEJA/VEJA)

    Desafiando o preconceito crítico segundo o qual acontecimentos circunstanciais do dia não são matéria digna de literatura, Nathan Zuckerman fala, nas primeiras páginas de A Marca Humana, do mais vulgar incidente da crônica política americana em 1998: o caso entre o presidente Bill Clinton e Monica Lewinsky, estagiária da Casa Branca. O próprio título — The Human Stain, em tradução mais literal, seria A Mancha Humana — alude ao vestido manchado do sêmen presidencial que foi apresentado como prova do adultério no Salão Oval. Zuckerman observa que o episódio açulou um ancestral sentimento dos americanos: o “êxtase da santimônia”. A narrativa logo se descola da crônica erótico-política para acompanhar a queda em desgraça de um professor universitário injustamente acusado de racismo — e então a santimônia, que no affair Clinton-Lewinsky vinha sobretudo da oposição conservadora ao presidente democrata, desponta entre acadêmicos progressistas enfronhados em teorias pós-estruturalistas sobre raça, classe e gênero. A intrincada linha de repressão puritana que vai dos gabinetes de congressistas reacionários às cátedras de literatura só poderia ser desenredada pela percepção do escritor americano, que, em três dezenas de livros de ficção, realizou uma crônica desassombrada da sociedade de seu país, em suas variadas tensões e transformações a partir da segunda metade do século XX — um romancista que escrevia sobre sexo com liberdade e vigor inexcedíveis, sem o temor de confrontar as realidades mais obscuras do desejo (em particular, do desejo masculino). Nathan Zuckerman, o narrador de A Marca Humana, é ele mesmo uma criação desse escritor excepcional. Foi seu delegado ficcional em nove livros, que permanecem entre os bons leitores — enquanto o escritor real, Philip Roth, deixou o mundo na terça-feira 22, aos 85 anos.

    A insuficiência cardíaca que levou Roth do hospital onde estava internado em Nova York não abreviou sua obra. O autor de Operação Shylock e Pastoral Americana havia anunciado publicamente sua aposentadoria em 2012, dois anos depois da publicação do último livro, Nêmesis. Encerrava ali a carreira que lhe valeu os maiores prêmios literários dos Estados Unidos, como o Pulitzer e o National Book Awards — carreira que, a despeito da consagração crítica, se desenvolveu sempre sob o signo da controvérsia. Filho de um corretor de seguros e de uma dona de casa de Newark, no Estado de Nova Jersey, Roth despertou para a literatura na Universidade Bucknell, na Pensilvânia, na qual se matriculara, nos anos 50, com o vago propósito de tornar-se um “advogado dos oprimidos”. Já em seus contos iniciais, publicados em revistas como The New Yorker — e depois coletados em Adeus, Columbus (1959), seu primeiro livro —, as descrições irreverentes da comunidade judaica que conheceu na infância e na adolescência despertaram reações destemperadas de rabinos e da Liga Antidifamação, organização dedicada a combater o antissemitismo. A pecha de “judeu que odeia judeus” perseguiria Roth nesses primeiros anos. Mais tarde, viria o rótulo de misógino, que a crítica feminista apôs a seus livros povoados de personagens priápicos. Essas duas linhas de ataque militante seriam inflamadas pelo livro que consagrou definitivamente o escritor — O Complexo de Portnoy, de 1969. As aventuras sexuais do advogado judeu Alexander Portnoy — fossem elas com um pedaço de fígado de boi ou com mulheres — causaram um escândalo que não se via na literatura de língua inglesa desde O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Law­rence. Talvez ainda seja o livro pelo qual Roth é mais conhecido, embora não seja sua melhor obra.

    Há farto material autobiográfico na ficção de Roth, mas ele tentava, em certa medida, preservar sua intimidade. Em Os Fatos, livro de memórias publicado em 1988, ele alegava ocupar uma posição intermediária na escala de exposição pública das celebridades literárias americanas — um meio-termo entre o exibicionismo de Norman Mailer e a reclusão de J.D. Salinger. No mesmo livro, é verdade, narrou detalhes de seu infeliz casamento com Margaret Martinson Williams (cujo nome é alterado no texto), a garçonete que o levara ao matrimônio fingindo uma gravidez. Dois anos depois de Os Fatos, Roth casava-se pela segunda vez, com a atriz inglesa Claire Bloom. O divórcio veio em 1994, e em 1996 a ex publicou um livro que reforçaria o estereótipo do monstro machista. Claire acusava Roth de ter sido um marido frio e controlador. Em entrevistas, o escritor recusava-se a falar desse episódio.

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    O ultraje final
    Aqui estou eu - Em 1968, nas ruas de Newark, cenário de muitos de seus livros: crônica da vida dos judeus americanos (Bob Peterson/The LIFE Images Collection/Getty Images)

    Nos anos posteriores ao segundo casamento malogrado, o solitário irredutível dividia-se entre o apartamento em Nova York e a casa em Connecticut onde produziria alguns de seus melhores romances, com uma rigorosa disciplina de trabalho (costumava escrever em pé). Em 1995, publicou o vigoroso e provocador O Teatro de Sabbath — cujo protagonista é uma espécie de versão mais velha e mais radical de Portnoy. Na mesma década, seu mais costumeiro alter ego, Nathan Zuckerman, que surgira como protagonista em O Escritor Fantasma, de 1979, recolhia-se à posição de narrador, contando a história dos personagens trágicos da chamada “Trilogia Americana”, composta de Pastoral Americana, Casei com um Comunista e A Marca Humana.

    A fase final de Roth foi dedicada a um tema obsessivo: a morte. É ela a grande inimiga da série que o autor batizou de Nêmeses, constituída de quatro livros breves: Homem Comum, Indignação, A Humilhação e Nêmesis. Resenhando o último deles, o escritor sul-africano J.M. Coetzee notava que aquelas eram ficções em “tom menor”: melancólicas, bem realizadas, com cenas memoráveis e ecos trágicos, mas desprovidas da incandescência criativa de romances como O Teatro de Sabbath.

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    Nos últimos anos, a cada anúncio do Prêmio Nobel de Literatura, comentaristas (o autor do presente necrológio incluso) observavam que a Academia Sueca desprezava Roth (e justo no ano de sua morte, em consequência de escândalos que envolveram assédio sexual, essa respeitável instituição não vai outorgar o prêmio). Pouco importa. Roth foi um dos maiores escritores de seu tempo, e não lhe faltaram distinções. Em 2011, foi condecorado com a Medalha Nacional de Humanidades pelo então presidente Barack Obama (aliás, a despeito da fama de besta-fera do patriarcado conservador, Roth era um homem de esquerda, eleitor do Partido Democrata). Mais comovente parece ter sido a homenagem que recebeu, no aniversário de 80 anos, em Newark, cenário de tantos de seus livros. O escritor leu então uma passagem de O Teatro de Sabbath na qual o protagonista visitava o cemitério onde estavam enterrados seus pais e seu irmão. O trecho terminava com a frase “aqui estou eu” — entenda-se: aqui, entre os mortos. Era um tema por excelência de Philip Roth: nossa transitoriedade. A breve passagem por este mundo ficou mais rica com sua obra.

    Publicado em VEJA de 30 de maio de 2018, edição nº 2584

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