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Ouça todos os surdos

Depois que a redação do Enem jogou luz sobre os deficientes auditivos, é hora de deixar claro: os desafios para a educação de quem não ouve são enormes

Por Paula Pfeifer*
Atualizado em 4 jun 2024, 19h46 - Publicado em 10 nov 2017, 06h00

Em meus anos de escola e faculdade, apresentei todos os graus da surdez: leve, moderada, severa e profunda. Por ter uma deficiência auditiva bilateral progressiva, comecei o colégio ouvindo muito bem e, até me formar em ciências sociais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), perdi por completo a capacidade de ouvir. As dificuldades me acompanharam do início ao fim de meu processo de aprendizagem. A sala de aula é um dos espaços mais traumáticos para quem não ouve, ou ouve mal. Eu procurava os lábios dos professores para lê-­los, mas eles usualmente se posicionavam de costas para mim, escrevendo no quadro. Todos falavam ao mesmo tempo. O ruído de fundo me impedia de entender as conversas. Os vídeos e filmes exibidos não tinham legendas; logo, eram praticamente incompreensíveis para mim. Na sala, eu precisava me sentar num lugar estratégico — sempre na fileira grudada na parede lateral, para que meu ouvido “bom” captasse o som — e passava o tempo todo tensa, no aguardo do momento em que algum colega me chamaria e eu não o ouviria.

Em 2016, vivi uma experiência transformadora. Fui aluna num curso de extensão ligado a publicidade no Rio de Janeiro. Dessa vez, contudo, já possuía dois implantes cocleares, que me possibilitavam ouvir e compreender tudo o que o professor e os colegas diziam. Após a primeira dessas aulas, chorei, sozinha, pois naquele dia entendi o que significava ser um aluno que ouvia e que, portanto, não dependia do que defino como uma “acessibilidade inexistente”. Não tive de chegar em casa e repassar toda a matéria por não ter ouvido as explicações. Não precisei ficar num canto com um sorriso amarelo, fugindo das interações sociais. Não fingi entender as coisas que não havia entendido. Senti-me, finalmente, incluída. Foi doído compreender tudo o que perdi nos meus anos de escola e faculdade em consequência da surdez. Ainda pior que isso foi a posterior percepção de que havia escolhido um curso superior com base em um único critério: o que eu conseguiria fazer mesmo diante da minha incapacidade de ouvir. Mas, no curso no Rio, senti-me inteira, e não pela metade. Minha inclusão foi mérito próprio, pela decisão de encarar a surdez de frente e combatê-la com as armas proporcionadas por uma reabilitação auditiva adequada.

O tema da redação do Enem — Desafio para a formação educacional de surdos no Brasil — fez o país inteiro perguntar-se: quem são os surdos? Quais são suas dificuldades? Do que eles precisam? A surdez é a deficiência invisível, mas também é a mais heterogênea de todas. Existem os surdos oralizados, como eu. Ou seja, surdos que falam, leem lábios e eventualmente usam aparelho auditivo e implante coclear para voltar ao mundo dos sons. Esses não precisam da língua de sinais. Há também os surdos sinalizados, que se comunicam exclusivamente por Libras (a língua brasileira de sinais). E ainda existem os surdos bilíngues, que usam tanto a fala quanto os sinais.

Todos, contudo, têm um elemento em comum: enfrentam desafios imensos quando inseridos no sistema educacional brasileiro. O maior deles é justamente a incompreensão e o desconhecimento da diversidade que existe entre aqueles que apresentam essa deficiência. Todos nós, surdos, sofremos com a falta de acessibilidade, com o preconceito, com os professores despreparados e com as escolas que preferem não nos ter como alunos. Entretanto, as ferramentas de acessibilidade que devem ser oferecidas a cada um desses grupos são distintas. Os surdos oralizados, por exemplo, necessitam de legendas, aro magnético (tecnologia de amplificação do som compatível com aparelhos auditivos) e salas de aula com tratamento acústico. Já os que se apoiam na Libras precisam de intérpretes.

“Após a primeira aula, chorei, sozinha, pois naquele dia entendi o que significava ser um aluno que ouvia”

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Ser surdo oralizado no Brasil nos torna ainda mais, como gosto de dizer, “invisíveis” do que é o comum para os que possuem deficiência auditiva. Ações governamentais, a imprensa e até a recente prova do Enem seguem ajudando a enraizar no imaginário popular que a surdez poderia ser contornada com o exclusivo uso da língua de sinais. Isso equivaleria a afirmar que “todo surdo é mudo” e que a acessibilidade para nós simplesmente significaria disponibilizar um intérprete de Libras. Por exemplo, os textos motivadores da prova do Enem não fizeram alusão à diferenciação entre os surdos que ouvem um pouco, ou aos surdos que falam, muito menos às suas necessidades dentro de uma sala de aula. Fomos excluídos, como se não existíssemos. E, pior, houve milhares de professores e alunos reclamando de um tema “tão inútil”, “não falado” e “idiota”, como li em tantos comentários em redes sociais.

Aos que imaginam que os surdos oralizados são uma minoria, sugiro que observem a quantidade de lojas de aparelhos auditivos que existem na sua cidade, bem como se informem sobre a política de reabilitação auditiva do SUS, que fornece aparelhos e implantes cocleares sem custo. São milhões de alunos no país com algum grau de surdez, passando por múltiplas dificuldades de aprendizado, todos os dias. Em pleno ano de 2017, saibam que a maioria das pessoas com algum grau de surdez pode ser reabilitada por meio de novas tecnologias. A audição é o único sentido humano que pode ser restaurado bionicamente, e o implante coclear já foi incluído em listas que compilam as maiores maravilhas científicas do século XX, ao lado da televisão e do avião a jato. Por que então seguimos associando a surdez exclusivamente à língua de sinais e à instituição de escolas especiais para surdos?

Os desafios para a educação de surdos no Brasil são inúmeros. Faltam, por exemplo, apoio e suporte às famílias com filhos que apresentam a deficiência; conhecimento dos gestores; professores preparados para ensinar alunos surdos, sinalizados e/ou oralizados; uso dos recursos públicos de modo sensato e eficaz; acessibilidade. Ou seja, falta a estrutura que poderia fazer com que os alunos surdos saíssem da escola preparados para correr atrás dos seus sonhos, sejam eles quais forem — é tristíssimo limitar suas possibilidades aos estragos causados por alguma deficiência, como a falta de audição. O surdo que recebe educação pífia está fadado a ser um estrangeiro dentro do próprio país, pelo resto da vida.

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Se não for por solidariedade, é também preciso lembrar que ninguém está livre de adquirir uma deficiência física ou sensorial a qualquer momento. Deficiências não escolhem classe social, cor, raça, credo. A acessibilidade pela qual eu luto hoje pode ajudar você amanhã.

* Paula Pfeifer é autora do blog Crônicas da Surdez, que originou os livros Crônicas da Surdez e Novas Crônicas da Surdez: Epifanias do Implante Coclear (Editora Plexus), e gerente da Sonora Clínica da Audição, no Rio de Janeiro

Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2017, edição nº 2556

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